Corredor húngaro
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 25 de novembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Com a crise de refugiados das guerras e de situações de miséria forçada na Síria, no Afeganistão e no norte da África, que apavora muitos países europeus, vale a pena ouvir o que nos tem a alertar o acelerado coração húngaro em sua mundivivência poética. O país aparece no noticiário por ser passagem de migrantes dessas zonas de conflito, na tentativa de chegar à Áustria e à Alemanha.

Abençoada por uma natureza pródiga, com vastas planícies, lagos e rios navegáveis, um deles, inspirador da famosa valsa Danúbio Azul, do compositor vienense Johann Strauss (1825 – 1899), a Hungria sofre com sua posição geográfica, na Europa Central, responsável por um histórico processo de ocupações, invasões, perda de território, influências políticas e domínios militares.

Por séculos e séculos os húngaros foram abusados por celtas, romanos, hunos, eslavos, germânicos, mongóis, otomanos, austríacos, soviéticos e pela Alemanha nazista. É itinerário permanente de escape de povos da zona conflituosa dos Balcãs, e agora vive o drama de ser rota de tráfego no maior influxo migratório acontecido desde a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).

O drama húngaro diante desta realidade está presente no seu Hino Nacional (1844): “Silvar sobre nós fizeste / as setas dos mongóis / e o julgo dos otomanos / nossos ombros vergastes”; no qual pedem a compaixão divina para se livrarem desse “Joguete de desgraças” e para terem “um ano de bênçãos”. Esse estado de apreensão é também a aflição dos seus poetas.

O poeta Miklós Radnóti (1909 – 1944) integrava o Serviço de Trabalho Obrigatório quando, por estar adoentado, foi sacrificado com uma bala na nuca, durante uma marcha forçada rumo à Alemanha. Seu corpo, enterrado em vala comum, foi identificado anos depois por conta de um caderno de poemas guardado no bolso da jaqueta impermeável que usava na ocasião.

No livro “Poetas Húngaros”, organizado pelo professor Zoltán Rözsa, criador do Departamento de Português da Universidade Elte de Budapeste, há um poema de Radnóti, intitulado Fragmentos, que diz: “Vivi, assim, na terra num tempo / em que o homem se havia aviltado a tal ponto / que matava não só por ordens mas por gosto, / seguia falsas fés, se irava injustamente / e enredava a vida em delírios dementes”.

E nesse poema, de 1944, ele diz mais: “Vivi, assim, na terra num tempo / em que era uma virtude a denúncia e heróis / eram o assassino, o traidor, os ladrões (…) Vivi, assim, na terra num tempo / em que apenas restava ao que não se conforma / enterrar-se, mordendo os punhos de vergonha”. Miklós Radnóti refere-se certamente a poetas como Attila József (1905 – 1937) que, diante da impossibilidade de viver dignamente, cometeram suicídio.

József foi expulso da universidade, em 1925, por ter escrito o poema Com Coração Puro: “(…) Há três dias não como / o menor alimento. / Tenho em força vinte anos: / os vinte anos eu vendo-os. // Se ninguém os deseja / que os compre o diabo. / Com o coração puro, roubarei / e matarei, se necessário. // Agarrem-me e enforquem-me / lancem-me à terra abençoada: / uma erva de morte crescerá / sobre o meu lindo coração”. A que distância o corredor húngaro está dos nossos corações?