LIVRO DOS NÚMEROS – Refugiados brasileiros
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 165 (Editora Riso), pág. 30
Edição de dezembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A literatura bíblica diz que após a libertação do sistema explorador e opressor dos reis, os escravos do Egito passaram a caminhar por 40 anos pelo deserto em busca de um sistema de igualdades adequado à vida comunitária das tribos. Toda uma geração sucumbiu nesse percurso, na perspectiva de que seus filhos alcançariam a liberdade.

A crise migratória de refugiados das guerras atualmente potencializadas no Oriente Médio e no norte da África, rumo a países europeus, constitui um acontecimento de relevante densidade significativa para o momento de tensão experimentado na transição do controle do poder político e econômico centralizado para a multipolaridade.

Os ataques internos e externos sofridos pelo Brasil, com amplo apoio de agências transnacionais fomentadoras de pânico, fazem parte de uma resposta à nossa ousadia de sair da dependência, ampliando nosso acesso a outros grandes mercados e nossas relações com países dos cinco continentes, tanto no G20 e nos BRICS, como em outros fóruns com os árabes, asiáticos, africanos e América hispânica.

O êxodo brasileiro tem, portanto, paralelos na travessia do deserto bíblico e na circunstância de tempestades de areia midiática, estimuladas pelos oligopólios e suas estratégias de enfraquecimento das referências republicanas, como forma de retomada da planificação neoliberal e estabelecimento de uma nova polarização, tendo como falso inimigo comum o estereotipado Estado Islâmico. Essa onda trabalha ainda para transparecer que a política é apenas roubalheira, disputa aética e esperteza, deslegitimando a democracia.

A delicada situação do Brasil expõe, assim como na fuga do Egito, seu ponto mais vulnerável na constatação de que não é possível dar um salto repentino de um sistema para outro. O texto sagrado sugere a prática da aprendizagem na travessia do deserto e, apesar dos ganhos sociais alcançados, perdemos a excepcional oportunidade de nos preparar para a prática de novos hábitos e estilos de vida.

O caos posto pela situação dos refugiados da miséria e da pobreza, que entraram no mercado de consumo brasileiro, faz parte da metáfora do deserto, na qual é grande a tentação dos vícios do velho sistema social anteriormente condenado. O Livro dos Números conta que é aprendendo a cruzar o deserto que se consegue iniciar a construção de alternativas para o viver.

As movimentações em favor da ascensão social no Brasil foram insuficientes porque, embora tenham trazido o novo, em termos de políticas públicas para um país ainda com fortes resistências coloniais, não educaram para o novo, instaurando, assim, conflitos conexos, com o fortalecimento do consumismo, da ostentação e das manifestações segregadoras.

Os refugiados brasileiros iniciaram, com olhos no retrovisor, uma longa caminhada em tempos hostis, produzindo um grave problema de insolação política e social pelo reflexo ofuscante causado pelos espelhos da inveja e do ressentimento. Isso ocorreu tão cegamente porque um número destacado das lideranças que conduziram esse processo declinou das provações para apenas usufruir do bem-bom do poder e da vaidade do mandar que ele propicia.

A luta para se manter nos cargos e o empenho para aproveitar suas benesses falou mais alto do que os supostos compromissos políticos assumidos, o que impediu essa gente de aproveitar as posições conquistadas para dar exemplos e criar papeis-modelo favoráveis a outros modos possíveis de viver. E não foi por falta de recursos naturais e de tesouros culturais, que isso o Brasil tem em abundância.

A incompreensão de que no meio do caminho da transformação existe a necessidade de racionamento do deserto em seu tempo de reaprendizagem, jogou no lixo da política suja – e não é demais repetir – a rara oportunidade histórica que construímos nos últimos 40 anos no Brasil. Está tudo no “Cemitério da Avidez”, onde se sepultam o aprendizado da liberdade e de onde brota o risco de destruição daqueles que a cultivam. Esses acontecimentos não podem, contudo, travar o surgimento de novas consciências.

A caminhada é longa, ainda que o planeta esteja em fase adiantada de esgotamento de recursos naturais e a humanidade em colapso humanitário. Mudar requer posicionamento, desacomodação e esforço transformador. Nem todos suportam consumir apenas o necessário ou viver sem privilégios corrosivos. Por isso a pressa e o imediatismo da ganância agem como fonte contaminada de corrupção. E mesmo aqueles que foram eleitos por defenderem a equidade social e o respeito pelo meio ambiente acabam muitas vezes servindo-se do poder para reeditar a exploração e o enriquecimento ilícito.

Desse mundo de corrosão da moral social, de violação da moral religiosa e de deturpação da moral política é que o povo brasileiro precisa fugir. O momento é de dúvidas profundas – eu sei – mas só nos resta retomar a realidade caótica e sem escalas das areias, ora escaldantes e ora insuportavelmente frias, com a esperança de que, provavelmente, em mais 40 anos de luta intensa, as gerações seguintes aprendam com os erros e acertos da nossa travessia. Em frente!