As escolhas do falso self
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 02 de março de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Uma menininha muito simpática apresenta em seu canal de internet a nova geração de bonecas que está à venda em uma loja. Ela aponta detalhes do brinquedo, exibe referências atraentes na embalagem e mostra um monte de acessórios que acompanham a série, enquanto preços e prazos vão aparecendo a seu lado.

Criança vendendo para criança é um recurso há muito utilizado pela publicidade. A novidade no caso dessas pequenas vendedoras do mundo social virtual é que, num primeiro momento, elas podem fazer isso sem sair de casa, exibindo seu deslumbre ao abrir e comentar pacotes de produtos que recebem dos fabricantes.

O normal nessas transações comerciais é incluir na contrapartida do suposto brinde recebido o contato da empresa para quem quiser transformar o interesse despertado em compra. Nessa nova e eficiente estratégia mercadológica, aquelas crianças que alcançam elevadíssimos acessos em seus canais passam a ser contratadas para dar seu show de convencimento no lugar onde as ofertas podem ser diretamente adquiridas.

Por outro lado, começam a surgir também na internet crianças tratando de temas curiosos de suas vidas, como o caso do menino vegetariano que criou um canal para falar dos seus hábitos alimentares como estilo de vida, e da menina que gravou a curiosa descoberta das razões de umas batatas terem nascido e outras não, em sua experiência de trabalho escolar.

Nota-se que as crianças que estão produzindo essas alternativas de ocupação positiva do ciberespaço contam com o envolvimento de suas famílias e escolas. Com isso, diferentemente das meninas e meninos manipulados por corporações agressoras dos direitos infantis, elas passam a ter a oportunidade de restabelecimento do seu Eu essencial (self).

Nos debates sobre consumismo, exemplos como esses são sempre boas ilustrações para o compartilhamento de reflexões a respeito do que é possível fazer diante das falhas de convivência social decorrentes do consumo tratado como ideia de felicidade.

Óbvio que a correlação de forças entre a sociedade e o mercado é desigual e, muitas vezes, desestimuladora de gestos simples que podem ser de grande importância no desenvolvimento do senso de continuidade existencial. O discurso da liberdade de escolha praticado pela publicidade é tentador, pois transmite à criança a impressão de que ao querer o brinquedo oferecido está manifestando sua preferência.

Os avanços desses efeitos ilusórios da ideologia do consumismo podem ser vistos em estágios diferentes de perturbação do sujeito, sobretudo por falta de orientação afetiva, cultural e de espiritualidade para a vida. A incontrolável busca por popularidade nas redes sociais virtuais é um dos sintomas de desenvolvimento do Eu adaptado (falso self), que, ao entrar em fase de consistente substituição do Eu essencial (self), descamba para a irrealidade.

O grande dilema que se impõe ante a fantástica experiência de evolução do ser pessoa, considerando os ambientes sociais físicos e virtuais, está, portanto, associado à capacidade de compreensão do que é mesmo consumo e consumismo. A distinção clara dessas duas perspectivas socioculturais e políticas é o que pode permitir à infância escapar das escolhas do falso self e suas armadilhas.