Achados de Christiano
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 23 de março de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Por muitas vezes tive a satisfação de frequentar a casa do pesquisador Christiano Câmara (07/10/1935 – 22/03/2016) e da dona Douvina. As conversas debulhadas com o casal pelas salas, corredores, jardim, quintal, e no ventinho bom do balançar das cadeiras na calçada da rua Baturité, sempre foram para mim um presente da amizade, do carinho e da singularidade dessas pessoas tão especiais.
Estou fora do Ceará e, sabendo de longe que ele faleceu, rapidamente voltei a encontrá-lo no tanto de boas lembranças que guardo desse admirável memorialista da música brasileira. Dos oitenta anos que ele viveu, usufrui da metade, sempre atento aos seus sentimentos efusivos, sua emoção forte e seu instinto fabulador. Meticuloso, sem máscaras, Christiano ia direto ao que acreditava e sentia prazer de apresentar provas do que dizia.
Ele necessitava desse apego ao matar da cobra e mostrar do pau para bradar sua fé na arte musical de qualidade e nos santos artistas que reconhecia como verdadeiros. Para isso, buscava por trás do clima abafado pela indústria cultural, um distante idealismo a restituição de um saber acumulado, transformado no acervo de sons e imagens que tomou conta do seu cotidiano e do seu viver.
Fazia isso em movimento contínuo. Sentia-se parte de um tempo da música levado ao esquecimento, mas que ele estrebuchava para não deixar que ficasse para trás. Era encantadora essa pulsão de Christiano. Era bom ouvi-lo vibrante em sua irretocável eloquência. Era enriquecedor, mágico. A radicalidade dele soava com firmeza no compartilhamento incisivo de algo que ele não renunciava.
O mais curioso nas conversas com Christiano Câmara era que com toda essa convicção ele não queria mudar o que a gente pensa. Seu maior desejo estava na vontade de ser respeitado, de ser ouvido e considerado em seus princípios e fundamentos. Tanto que onde quer que estivéssemos, fosse qual fosse o assunto, predominava a fala dele, seus gestos comunicativos; tudo apreciável e gostoso de curtir.
Generoso e tomado de afeto, por diversas vezes ele me surpreendeu com presentes inesperados. Bastava, na nossa troca de palavras, escapar uma curiosidade por algum tema, que dias depois ele telefonava dizendo que tinha gravado o que eu queria. Assim, fazíamos de cada encontro um reencontro que, para mim, tornava-se uma oportunidade de sucessivos achados e ampliação de horizontes.
Quando eu visitava o Christiano e a dona Douvina, me sentia dentro do mundo deles, não somente da casa-museu, mas de um lugar de inquietações. Ele estava permanentemente soltando argumentos que justificavam sua postura existencial. Alimentava-se do conflito entre sua percepção e o que considerava a involução da música. Tinha regras e valores bem definidos, o que o fazia seguir em frente com todo o seu arsenal de defesa e ataque na batalha pela liberdade de negar com veemência a fugacidade.
A negação em Christiano não o tornava, contudo, um angustiado sem causa. Pelo contrário, acendia nele uma fogueira a iluminar a consciência do que queria e acreditava, independentemente do que os outros pudessem pensar. Ou seja, o que poderia parecer solipsismo e mera confirmação de experiência mental de subjetividade centrada, a mim chegava como autenticidade, vitalidade do ser pessoa e potência cultural. Viva Christiano!!!