Umes investe na MPB
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 28 de Setembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A criação de um selo fonográfico com o intuito de promover as expressões da diversidade musical brasileira, colocadas à margem da mídia convencional, tem sido uma forma louvável de retomada da participação estudantil na vida político-cultural do País. A mais recente produção do Centro Popular de Cultura, da Umes paulistana, é o novo disco do violonista cearense Nonato Luís, “Choro da Madeira”. Na seqüência, será a vez do grupo feminino Comadre Florzinha, de Pernambuco.

Para começar o ano 2000 de cabeça erguida, a gravadora vem movimentando o estúdio com algumas preciosidades do nosso cancioneiro. Tem samba de raiz com o Quinteto em Preto e Branco; chorinho com Izaias e seus chorões; e Cézar do Acordeon homenageando Luiz Gonzaga. Na agenda, o CD comemorativo dos 45 anos de carreira de Inezita Barroso, uma pesquisa do inquieto José Ramos Tinhorão com as primeiras músicas gravadas de cada ritmo no Brasil, que receberá interpretação da cantora Maricenne, e, nada mais, nada menos, do que Carmélia Alves, com seus abençoados 78 anos, cantando Jackson do Pandeiro e Gordurinha.

Tudo isso sem as constrangedoras amarras dos paternalismos governamentais, sem os disputados incentivos das leis de cultura e sem as tradicionais viseiras do aparelhamento partidário. Apenas com inteligência e compromisso mesclados com a disposição dos adolescentes que dirigem a Umes de São Paulo e o empenho de alguns guerreiros que acreditam no patrimônio imaterial da música brasileira de qualidade, dentre os quais, merece destaque especial o diretor do selo, maestro Marcus Vinícius de Andrade. Esse pernambucano, que nos anos 70 dirigiu a Marcus Pereira, gravadora responsável pelo mais extraordinário registro de cantos das diversas regiões do Brasil, é ainda o presidente da Associação dos Músicos e Arranjadores, AMAR, através da qual desenvolve um intenso trabalho de conscientização da importância do Direito Autoral.

Dá gosto ver essa ação concreta de estudantes, contribuindo para a formação da brasilidade tão agredida cotidianamente pelo cartel das gravadoras transnacionais que dominam os canais de acesso e mutilam, pela força do isolamento, os valores autênticos da música plural brasileira. O selo CPC-Umes põe a nossa química criadora na ofensiva ao fazer o registro e a difusão da música do fino gosto popular, bem como suas releituras, sem preocupação com modismos. As verdadeiras obras artísticas não carecem de data de validade. Motivados por essa percepção da permanência, os gestores do selo mantém todos os títulos em catálogo. Com capas do fotógrafo Gal Oppido, a tiragem inicial é de duas mil cópias e, conforme o ritmo dos pedidos, vão sendo providenciadas compulsoriamente as reposições. A coordenadora de comunicação da gravadora, Mônica Battello, e-mail cpcprod@umes.org.br, agiliza quase tudo via internet, evitando assim a necessidade de uma grande estrutura operacional.

A posição de Marcus Vinícius em relação ao estado de coação a que está submetido o ouvinte brasileiro é clara e pública. Para ele, o Brasil é o primeiro mundo da música, mas vive injustificavelmente na dependência do poder de alguns executivos inconsistentes e oportunistas que passaram a ser traficantes de produtos musicais, infestando o mercado de drogas. Não precisa refletir muito para identificar essa constatação do diretor da CPC-Umes. O número de viciados em “cola musical” é assustador. Poucos ainda têm paciência para escutar alguma composição com forma e conteúdos decentes e criativos. As músicas de entretenimento, então, nem pensar. Servem apenas para “lombrar” as pessoas em certos momentos e depois jogam o consumidor de volta à sarjeta, aumentando a desesperança do dia-a-dia.

Com o foco na valorização das manifestações regionais, na tradição étnica, no resgate dos mestres, no estímulo aos novos talentos, na vanguarda, no clássico, no moderno, na memória sonora do cinema e do teatro brasileiros, a gravadora vai marcando sua participação nos crescentes nichos de interesse por música de qualidade artística e cultural. A escolha dos títulos passa pelo crivo experiente de Marcus Vinícius e pelos ouvidos adolescentes dos dirigentes da Umes. O resultado tem sido satisfatório. Talvez alguns claros estéticos ainda precisem ser preenchidos. Observando o catálogo como um todo, apesar da sua bem cuidada diversidade de ritmos, estilos e temas, é fácil notar um certo ranço do gênero de MPB tradicional fomentado no CPC da UNE, há mais de duas décadas. Apenas exemplificando aleatoriamente, entendo que trabalhos como o do Edvaldo Santana, do Eliakin Rufino, da Rosa Reis e do Abidoral Jamacaru, atendem ao perfil teórico defendido pelo selo, mas na prática ainda não foi sinalizada a valorização desses segmentos fundamentais da nossa música contemporânea.

Existem muitas maneiras de se fazer música brasileira e Gilberto Gil diz que prefere todas. Esta citação está reproduzida no encarte do CD “Caravana Contrária”, primeiro da série Poesia Já! São 27 poemas de Mário Chamie sonorizados com intervenções musicais de Marcus Vinícius, cuja criação musical dialoga também com os poemas oralizados de José Nêumanne Pinto, no disco “As Fugas do Sol”, que compõe o segundo Poesia Já!, com 30 poemas. O músico ressalta que a sua participação nesses CDs-livretos de poesia está longe de ser begê, com costumeiros efeitos sonoplásticos. Seu propósito é interatuar no discurso verbal, gravado especialmente pelos próprios autores.

O disco do Vocal Catarsis aparenta fugir da proposta do catálogo, mas não é bem assim. Integrado por quatro rapazes e quatro moças da rádio e televisão cubana, o grupo canta a cappela, com destaque para a vocalização em substituição aos instrumentos musicais. Esse velho costume caribenho vem do tempo da escravidão, quando os senhores tomavam os instrumentos dos negros na tentativa de impedi-los de exercer seus rituais afro-religiosos. A saída foi passar a fazer percussão com a boca, garantindo eco à espiritualidade. Da mesma maneira que Pablo Milanés adverte que “os caminhos não se fizeram sozinhos”, toda essa contextualização histórica, somada à qualidade técnica e artística do Vocal Catarsis, bem como o seu repertório de adorável música cubana, construiu o convite para a gravação. De quebra, ganhamos uma versão latinizada para “Eu sei que vou te amar”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

O arsenal de musicalidade desenhado pelo selo CPC-Umes é merecedor da nossa atenção especial. Vai da percussão cruzando benditos, de Caito Marcondes ao Caipirarte, da dupla Célia e Celma. Música brasileira que não tem fim, ao largo do horizonte da nossa diversidade inventiva. Mulheres em Pixinguinha, Sincopando o Breque, Concertoria, Canudos, Gereba, seresta, Candeia, JP Sax, Géara cantando choro, Cátia de França, “Kukukaya, eu quero isso aqui”. Tantos nomes, tanta arte e o Brasil sem saber de si. A esperança está nessas saídas simples e criativas que nascem do idealismo prático. O projeto do CPC-Umes, que conta ainda com teatro, cinema e video, está fazendo história. Uma história incrivelmente financiada pelos “bancos” escolares.