O tema e o conteúdo
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 06 de julho de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A partir do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) universitário, o ator e militante LGBT, Ari Areia, montou um monólogo para expressar a situação crítica vivida pelos transexuais. O espetáculo, intitulado Histórias Compartilhadas, vinha sendo apresentado no Teatro Universitário, em Fortaleza, com classificação indicativa de 18 anos.

Em uma determinada cena, tipo exame de laboratório, o protagonista coloca um garrote no braço e, por meio de tubo de coleta, derrama sangue venoso sobre um crucifixo disposto no assento de uma cadeira. O que poderia ser interpretado como uma das passagens fortes, exibidas a título de provocação para o debate, ganhou proporções preocupantemente inadequadas.

Transformada por uma deputada estadual evangélica em alvo de síndrome obsessiva, a peça teve alterado o seu campo de observação teatral para um cenário confusional alucinatório típico do primitivismo persecutório dos dogmas. Por conta disso, a parlamentar, conhecida como Dra. Silvana, está tentando aprovar um projeto de lei (PL nº 147, de 23/06/2016) que proíba “encenações pejorativas”, tornando crime tudo o que for considerado ofensa à crença alheia.

Religião também é cultura e esse tipo de intromissão político-religiosa nas atividades artísticas desvirtua o papel do parlamento. É evidente que cabe ao parlamento proteger o direito das pessoas às suas crenças, mas a Assembleia Legislativa é lugar de cidadania e não de culto. Neste caso, a proposta de censura em pauta certamente não terá êxito nas comissões constitucionais, entendendo-se que seria vexatório levá-la a plenário.

Esse é um debate com tema muito abrangente, pois envolve homofobia, intransigência religiosa, liberdade de manifestação artística e a inconveniência do outro como excesso. O assunto, posto apenas na condição de ato, extrapola a condição de conteúdo, em nome do que seria o aumento do seu significado.

Como nem o ator nem a deputada se restringem a ser o que são ou o que representam, a mensagem oscila entre o espetáculo como provocação e a política como oportunismo. O erro do ator teria sido, assim, o de lançar mão da mesma fonte simbólica da qual a parlamentar se vale para atrair fieis e eleitores, onde as dúvidas, as angústias e as críticas sociais se submetem a preceitos de verdades absolutas.

Observando-se a questão pelo viés do conteúdo e não do tema, pode-se dizer que o crucifixo ensanguentado não se restringe apenas à imagem disposta ao olhar do espectador, mas à explicitação do sujeito a quem o ator faz sua prece por um lugar na diversidade, dentro da relação corpo-mente e espiritualidade. As gotas de sangue pingadas de um braço estendido ao sagrado rompem com a noção do além, aproximando as circunstâncias divinas dos acontecimentos terrenais.

Em linhas gerais, de uma peça de teatro deve-se avaliar a qualidade artística, a interpretação e a sua força dramática. Escandalizar, chocar, provocar, faz parte dos atributos transpassados por causalidade de criação, e isso serve muitas vezes para ampliar a consciência social. Na política, contudo, quando o escândalo se instala, a consequência pode ser a produção de graves danos à sociedade.