Enformados e informados
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 13 de julho de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE

op_enformadoseinformados

No debate sobre música brasileira predominam duas situações desastrosas: uma é a confusão que muita gente faz ao tomar o entretenimento de massa como referência musical do país, o que resulta na interpretação equivocada de que não fazemos mais música como antigamente; outra é a falsa convicção das pessoas de somente dar valor ao que tem rótulo e foi eficientemente embalado, o que reduz a nossa música a uma parcela das produções do mercado fonográfico.

Esse esquema referencial distorcido é tão dependente de efeitos dos recursos técnicos de produção, de difusão comercial e de conivência historiográfica que temos dificuldade de estabelecermos os nossos próprios contatos com a pluralidade e a diversidade musical inventiva do país. Daí ser comum a existência de fonte de gratificação apenas quando se escuta uma música que tanto já tocou no rádio, na televisão, serviços de streaming ou em festas.

A música que, para se conhecer, precisa que superemos os obstáculos da ignorância e do fechamento preponderantes, estaria assim fora de cogitação. Isto não é um problema de infertilidade cultural, já que temos uma maravilhosa, abundante e renovada produção musical; mas de uma certa deformação educativa responsável pelo nosso desinteresse em ir além do que está nas mídias mais poderosas.

O acesso a todo saber ou conhecimento requer sempre uma ação desafiadora do potencial do objeto que se deve explorar. A curiosidade, o esforço, o senso de abertura e o querer mais são fatores indispensáveis à conquista desse acesso. Entretanto, quando o assunto é música brasileira, a postura dos enformados costuma sobrepujar a compostura dos informados na repetição dos padrões estabelecidos, resultando muitas vezes em casos de intolerância dos hegemônicos.

Há poucos dias identifiquei claramente esse tipo de mentalidade defensiva em duas postagens que fiz em uma rede social virtual. Ao compartilhar um vídeo recente das irmãs indianas Sreeusha e Sireesha (Mandolin Sisters), um seguidor reagiu dizendo que é “músico da música brasileira” e que “tocar choro é muito mais difícil do que essa coisa repetitiva”; tomando como provocação comparativa uma simples valorização de algo descolado das formatações dominantes.

Com a chamada “Brasil belo e profundo”, reproduzi no mesmo espaço um vídeo de 1952 com uma gravação antológica feita pela dupla paulista Cascatinha & Inhana da música “Índia”, versão brasileira de José Fortuna para a composição paraguaia de autoria do poeta Manuel Ortiz Guerrero e do compositor José Asunción Flores. O mesmo músico, identificado também como professor da rede estadual de ensino, sentenciou: “Isso é uma guarânia”; como se fora dos gêneros oficiais não houvesse música brasileira.

Não há contradição entre, de um lado, distinguir e valorizar a qualidade da parte significativa da música hegemônica e, de outro lado, reconhecer e dar importância à espetacular variedade do cancioneiro mestiço brasileiro. No fundo, tratam-se apenas de duas frequências necessárias para que, em processo dialético, possamos usufruir mais e mais da realidade ampla e fértil do patrimônio cultural renovável que é a nossa inventividade musical. Mas, para isso, ajudaria muito se os enformados se esforçassem um pouquinho para ouvir o que estão perdendo.