Círculos de leitura
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 20 de julho de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Tempos atrás passei uns dias na praia de Paracuru com um grupo de amigos, entre os quais estavam a educadora espanhola Catalina Pagés e o jornalista estadunidense Norman Gall, do Instituto Fernando Braudel. Eles falavam com entusiasmo do trabalho de despertar o interesse pela leitura em jovens da região industrial do ABCD paulista.

O ambiente era complexo, não só pelas condições de desigualdade social a que estavam submetidos, mas, sobretudo, pela tendência à noção de sucesso inspirada no individualismo, na supervalorização dos bens materiais e na atração pelo descartável.

O antídoto, pensado na experiência que se iniciava ali no primeiro ano da década de 2000, seria algo que contribuísse para o fortalecimento de parâmetros humanos firmes e consistentes e, para isso, nada como um projeto literário que lhes desse a chance de refletir e de expressar o que sentiam.

Com o projeto Círculos de Leitura, Norman Gall, Catalina e uma equipe de professores, psicólogos e artistas ligados ao Instituto Fernando Braudel estavam naquele momento lendo A Odisseia de Homero com adolescentes de Diadema. Em contraponto à autoafirmação pela agressividade excessiva e pelo crime, a força narrativa desse clássico propiciava a manifestação do que soa e ressoa dentro de cada um.

A opção pela Odisseia me chamou a atenção pelo tanto de curiosidade que ela pode despertar na juventude em situações sensíveis como a do canto das sereias e pelas decisões originais de Ulisses durante a travessia. Com leituras em voz alta e com o sentido das palavras significando aspectos do contexto local, essas vivências literárias eram engrandecidas pela história do próprio grupo.

O tempo passou e nunca mais havia tido notícias desse trabalho, até que li no caderno Aliás (de 10/07/2016, p.E4) do jornal O Estado de S.Paulo, um artigo do Norman Gall (Shakespeare em Quixeramobim), sobre a experiência dos Círculos de Leitura no interior do Ceará. No meio do sertão, onde a violência foi instigada pelo acesso ao consumo das populações mais desfavorecidas, sem qualquer reflexão do significado dessa desejável melhoria de poder aquisitivo, o Instituto Fernando Braudel está discutindo com jovens da caatinga sobre legitimidade, política e violência, a partir do livro Macbeth, uma tragédia escocesa shakespeariana, marcada por confusões mentais, ambições, induções, lealdade, traição e culpa na cobiça pelo poder.

Fiquei muito contente por saber disso, pois os programas oficiais de incentivo à leitura no Ceará cometem o grave erro de procurar estimular a leitura querendo ao mesmo tempo resolver os problemas de edição de autores locais. Por diversas vezes fui convidado a participar, tanto como autor como curador desse programa, mas declinei dos convites por não concordar com essa mistura de objetivos. Mais importante do que o lugar de registro de nascimento do autor é o conteúdo e a forma da literatura adotada, seja clássica ou estreante.

Em seu texto, Norman Gall diz que os Círculos de Leitura, surgidos na região metropolitana de São Paulo, já foram levados a escolas da Bahia, Minas Gerais e Pernambuco, “provocando com leituras e troca de ideias reflexões sobre os problemas eternos da humanidade”. Muito bom, afinal, não existe leitura de livro, o que existe é a leitura do mundo por meio de livros.