100 anos do Anjo do Pife
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 27 de julho de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Ele já fez a viagem de volta, mas a casa que construiu e onde desenvolveu com a família um lugar de aconchego e comércio de licores e guloseimas continua com a leveza e a alegria da sua alma. Alfredo Miranda (1916 – 2014) completa assim 100 anos, embalado pela memória sonora que ficou do seu pife e pela máxima que criou para animar as pessoas na busca do sentido da vida: “O importante não é viver, é saber viver”.

E Alfredo Miranda soube viver no sentido mais pleno da expressão. Amado em casa e nas ruas de Viçosa do Ceará, dizem que ainda hoje é possível escutar o seu assobio pelas calçadas. Era conhecido também na cidade pelo bico afinado que tinha. Deste modo, tocava o respeito que nutria pela dinâmica social, da qual era sempre atuante, fosse ajudando em construções de espaços comunitários e espirituais ou participando de cortejos em dia de festa.

No sítio Buíra onde nasceu e passou a infância, ele aprendeu desde cedo a produzir rapadura e cachaça. Foi lá que, na convivência com os meninos índios, começou a fazer e a tocar flauta de taboca. Mas desenvolveu mesmo foi o dom da lábia de vendedor. Sabia como ninguém realçar os atributos e a qualidade dos produtos que vendia. Valia de tudo para deixar as pessoas convencidas do produto que adquiriam, inclusive, contar anedotas e tocar pife.

Muita gente ia à Casa dos Licores apenas para falar com o Seu Alfredo, ouvi-lo tocar, se deleitar com o clima de alegria do lugar. Essa atmosfera de encanto continua preservada, sobretudo pelos cuidados da filha Tereza Cristina, herdeira do pai na poética e no amor pela conversa, e da mãe Terezinha, no nome e na alquimia dos paladares. Só de licores, a variedade ultrapassa mais de oitenta tipos, entre os de fruta, raízes, madeiras e ervas.

Quando Alfredo Miranda começou a construir a casa, aquela que seria a sua amada tinha apenas oito anos e morava no Sertão das Oiticicas. Ele passou dez anos para terminar a obra, época em que eles se conheceram, se apaixonaram e se casaram, ele com 26 e ela com 18 anos de idade. O trabalho do casal em ambiente doméstico criou uma liga de participação dos sete filhos e coube a Maria Inês, uma das quatro mulheres, a tarefa de ser vocalize enquanto ele tocava pife para as pessoas que chegassem.

Esse tipo de envolvimento de todos da família fazia parte do atendimento da casa. A pequena Inês, que assumiu o nome artístico de Inês Mapurunga, era muitas vezes tirada da cama para cantar quando tinha visita. Tomou gosto e seguiu com a música como ingrediente essencial do seu viver. Foi ela quem lindamente representou o pai na homenagem feita a ele pelo projeto do nosso livro-cd Invocado – Um jeito Brasileiro de Ser Musical (Armazém da Cultura), em show da banda Dona Zefinha que abriu sábado passado (23) o XII Festival Música na Ibiapaba, na praça da Matriz de Nossa Senhora da Assunção, realizado pela Secult em Viçosa.

Com acompanhamento da banda, Inês Mapurunga mostrou no palco-patamar alguns dos vocais que fazia com Alfredo Miranda na Casa dos Licores, e cantou a bela valsa Anjo do Pife, que compôs em homenagem ao pai. Lindo também foi ver a cidade comparecer em peso para aplaudir o espetáculo Invocado que Só e comemorar amorosamente o centenário dessa figura de grande valor cultural para o Ceará.