Nas pegadas de Usain Bolt
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 17 de agosto de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Cada atleta olímpico tem suas características destacáveis, seus méritos próprios e valores referenciais, mas o velocista jamaicano Usain Bolt é mais do que um atleta, por isso está associado às lendas. Antes do início dos Jogos Olímpicos do Rio 2016 ele teve sua participação ameaçada por uma lesão muscular. Mesmo assim quis conquistar seu ouro no Brasil e veio buscar.
Mais uma vez houve rumores por conta do modo como Usain comemora suas vitórias. A sisudez olímpica tem dificuldade de aceitar seus gestos brincalhões, suas batidas no peito, seus pulos e simulação de um raio, como referência ao sobrenome Bolt. As olimpíadas são muito padronizadas para admitir a naturalidade festeira de uma cultura vibrante, alimentada pelo mais puro, lúdico, divertido e determinado espírito esportivo.
É que o campeão jamaicano faz isso respaldado, não pelo que está por trás do sobrenome Bolt, dos seus pais, mas da cultura ancestral que lastreia seu nome Usain. Nos saberes da tradição ioruba esta é a denominação dada ao orixá da natureza, da ciência e das ervas, o que tem o dom da cura, o que cuida das ervas aromáticas, das infusões, dos chás e dos banhos sagrados nos rituais religiosos.
Essa entidade espiritual foi resguardada pelos antepassados de Usain Bolt e, juntamente com outros elementos presentes na alma de uma população predominantemente de ascendência africana, contribui para amenizar as sequelas do sentimento de inferioridade imposto pela escravidão. A cabeça erguida do atleta da Jamaica é a mesma dos guerreiros negros, que em meados do século XVII romperam com o sistema escravocrata e criaram suas comunidades na parte montanhosa do país.
O domínio pleno dos espanhóis e depois dos ingleses durou até 1962 nessa ilha caribenha que tem menos de três milhões de habitantes, que vivem de agricultura, mineração e turismo. Os pais de Usain, Jennifer e Wellesley Bolt, tinham uma mercearia de secos e molhados e criaram o filho comendo inhame e bebendo suco de tamarindo, enquanto ele temperava a musculatura em eventos de prática de velocidade comum na escola jamaicana.
Quando se diz que Usain nasceu em Trelawny (1986), vale observar que aquele lugar concentrava a maior quantidade de engenhos de cana de açúcar da ilha e, consequentemente, o maior grupo de quilombolas do país. Após o fim da escravidão, a ilha, que já tinha nativos, ibéricos, africanos e ingleses, passou a receber outros povos, sobretudo hindus, em uma mistura de crenças e tradições que se estendem da religiosidade rastafári, popularizada na música de Bob Marley (1945 – 1981), ao islamismo, passando pelo judaísmo e pelo cristianismo.
Nas minhas buscas pelo entendimento das contribuições das culturas afro-negreiras à invenção do Saci, cheguei a atribuir a amputação imaginária de uma de suas pernas a uma derivação do Osaín, em cuja representação lhe falta uma metade de todo o corpo. No artigo O Saci Pererê e a Perna Invisível (DN, de 23/10/2008), utilizei a metáfora da perna invisível da cultura para distinguir dribles, passos de frevo, lances de capoeira e outros significantes relacionados a jeitos e trejeitos de lutar, dançar, praticar esportes, enfim, da aplicação de uma magia cultural que me parecia mais profunda. Magia essa que torna a corrida inalcançável de Usain Bolt muito próximo do redemoinho do Saci.