Que atuação, Sônia Braga!
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 14 de setembro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE

op_que-atuacao-sonia-braga

A câmera ia mostrando as pessoas nas ruas de Ilhéus que observavam Grabriela subindo no telhado para resgatar a arraia (pipa) de um garoto. Na imagem, trazida pela lente, a gente via seu lindo rosto travesso, seus cabelos esvoaçantes sobre os ombros, o vestido sensual e seu corpo moreno se esfregando nas telhas que pareciam enrubescer com o contato.

Esta cena excepcional, uma das mais belas do audiovisual brasileiro, foi protagonizada por Sônia Braga em uma telenovela na década de 1970, baseada na obra de Jorge Amado (1912 – 2001). Na minha percepção de adolescente, nenhuma atriz do mundo era mais bonita e tão atraente quanto essa paranaense de Maringá.

Ela representava a síntese da beleza mestiça brasileira, além de ter um jeito próprio de ser mulher. Tinha para mim a potência natural de Ingrid Bergman (1915 – 1982), atriz que tão bem traduziu os encantos femininos suecos, colocando, inclusive, a força do seu estilo acima dos critérios estéticos determinados por produtores e diretores hollywoodianos.

Na trajetória de Sônia Braga, vários personagens reforçaram a sua voluptuosa semiologia, como foram os casos de Dona Flor e Tieta. Lembro-me do dia em que, na condição de repórter deste O Povo, fui ao Rio de Janeiro entrevistar a Sônia Braga, por conta do lançamento do filme O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco (1946 – 2016). Cheguei antes da hora marcada e fiquei em uma sala de espera. Estou ali, distraído, quando de repente uma mão toca meu ombro. Era ela, com seus cabelos soltos, blusa estampada, calça jeans e pés descalços.

Aproveitei que estávamos a sós e perguntei se eu poderia fotografá-la com exclusividade, já que a entrevista seria coletiva. E ela fez um tanto lá de poses para um tanto cá de cliques meus. Antes de subir ao palco, perguntei qual o maior desejo dela como atriz e ela me respondeu que era estar na memória dos homens. Claro que nunca me esqueci disso.

O tempo passou e mais uma vez vou ao cinema para ver um novo filme com Sônia Braga: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. Nele não tem a Gabriela de 25 anos ou a Mulher Aranha de 36 anos, mas a Clara, que ela interpreta com a maestria dos seus 66 anos. Diferentemente da Brigitte Bardot, na sarcástica composição de Tom Zé, ela não “envelheceu antes dos nossos sonhos”. E foi bom vê-la inteira, charmosa e intensa em uma das mais densas atuações de sua carreira.

O filme chega às salas de cinema no momento em que o Brasil passa pela vexatória situação de envelhecimento de uma esquerda vaidosa e apressada que desperdiçou os sonhos de um país menos desigual. A personagem vivida por Sônia Braga representa bem a complexidade emocional de muita gente que, nos dias de hoje, ainda preza pela integridade dos valores, mas, contraditoriamente, não consegue deixar de ser antiquada na sua expressão de liberdade.

Aquarius é um filme caricatural, feito para agradar. Mesmo assim vale a pena ser visto, por revelar o absurdo do poder econômico que submete pessoas a se mudarem para lugares indiferentes, pelo alerta à destruição perversa da memória, pelas imagens de Recife, pelo simpático sotaque pernambucano e pelo envolvente desempenho de Sônia Braga nesse papel que oscila entre o politicamente correto e a paranoia.