O poeta da verde e rosa
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 05 de outubro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Angenor de Oliveira (1908 – 1980), o Cartola, um dos maiores expoentes da música brasileira, tinha oito anos quando o também compositor carioca Donga (1890 – 1974) lançou o samba Pelo Telefone, considerado pela historiografia oficial como marco de um trajeto de grandes êxitos, que chega aos cem anos, neste 2016. O menino Angenor passou a infância em uma vila de operários da indústria têxtil, na rua General Glicério, no bairro das Laranjeiras. Seu pai, Sebastião, trabalhava na Companhia de Fiações e Tecidos Aliança e, nas horas plenas, tocava cavaquinho. Toda a família fazia parte do bloco carnavalesco dos Arrepiados, distinguido pelas cores verde e rosa. Com onze anos foi morar no Morro da Mangueira, se integrou ao bloco dos Arengueiros e, em 1928, tornou-se um dos fundadores da Estação Primeira, nome que designava a primeira parada de trem onde havia samba, para quem saía da Central do Brasil. Cartola levou as cores da folia dos pais para o estandarte daquela que seria uma das maiores escolas de samba do país. Pude sorver essa curiosa e admirável história por esses dias, ao cair de corpo e alma dentro da Ocupação Cartola, montada pelo Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, dentro das comemorações do centenário do samba. Aberta em 17/09, a mostra segue até o dia 13 de novembro, com imagens, sons e palavras revolvedoras dos tantos significados do poeta mangueirense. Os poemas que ele escreveu “para papel e não para disco” podem ser apreciados de forma manuscrita e datilografada. Dez deles estão publicados em um livro distribuído gratuitamente aos visitantes, no qual há ainda reflexões da pesquisadora Nilcemar Nogueira, neta do compositor, que é fundadora do Museu do Samba, do Rio de Janeiro. São poemas intensos, existenciais e pouco conhecidos. Em um deles, Obscuridade, Cartola revela sua angústia em um momento de ostracismo: “Passei pelo mundo sem ser percebido / Ouvindo de tudo / E a nada dando ouvido / Segui pelo caminho que tinha à minha frente / Mas não encontrei a estrada / Desejada em minha mente / Nada fiz que aos outros tivesse interessado”. Em Quero Mais Rugas na Face, ele ironiza o desdém para com a velhice: “Raro os que não me chamam / De velho, velho baldado / Curvo a cabeça calado / Satisfeito com o que sou”; e fez os versos Obrigado, Mangueira, para se despedir da escola de samba do seu coração: “Chorei com teus fracassos / Chorei nas alegrias / Missão cumprida eu parto”. O compositor da verde e rosa manteve-se sempre fiel à simplicidade da sua condição social e, mesmo nadando contra as tentativas de enquadramento da indústria fonográfica, teve a satisfação de ver sua obra consagrada ainda em vida. Antes de completar setenta anos, o selo Marcus Pereira editou o disco Cartola (1976), com seus maiores clássicos, O Mundo é um Moinho e As Rosas não Falam, obras brotadas no cotidiano do artista. Uma serviu de conselho para a filha adotiva em tempo de imaturidade amorosa: “Ainda é cedo amor / Mal começastes a conhecer a vida (…) Em pouco tempo não serás mais quem tu és (…) Preste atenção, o mundo é um moinho”; a outra, para dar resposta à Dona Zica que havia perguntado a ele por que as roseiras do quintal se reproduziam tanto e com tanta beleza. Ele argumenta que já havia perguntado, mas “As rosas não falam”. o