Sorriso de Socorro
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº176 (Editora Riso), p. 18
Edição de novembro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE

rivista_sorriso-de-socorro

Quem conheceu a minha mãe Socorro, quando ela era menina, conta que ela já gostava de sorrir na infância. Nasceu no sertão e aprendeu a se relacionar com a natureza e com as pessoas como quem rega a alma em seu trato de amor ao mundo.

Por 78 anos ela viveu em Independência, e está fazendo um ano que passou a residir em Fortaleza, depois da viagem de volta do meu pai Toinzinho (1921–2015), com quem foi casada por 62 anos.

Viver perto dos filhos foi um movimento natural de aconchego, embora mantenha a casa na fazenda Manchete funcionando, com geladeira ligada e ovelhas no pasto, tudo cuidado pelo Lisboa e pelo Manezinho, trabalhadores que consideramos da nossa família.

Uma das coisas que admiro em minha mãe é que ela tem o seu próprio espaço interior como lugar de vivência. Isso faz com que, ao se mudar, ela simplesmente desloque a paisagem interna para outro lugar.

No apartamento em que está morando sozinha, revela a satisfação dos que experimentam se conhecer melhor. Tem uma visão calma das coisas e faz tudo com a tranquilidade de quem confia.

A dona Socorro não perde tempo buscando explicações para o que não dá certo. Orienta-se pelo que virá e, desse modo, conduz com leveza a sua existência cotidiana. Ela tem mais coração do que razão no seu jeito de sentir e de resolver as questões da vida.

Logo que chegou em Fortaleza, levei-a para passar uns dias no apartamento da irmã dela, a querida Tia Nilda, que também é viúva e mora sozinha. Ao entrar no prédio percebi que havia um imóvel para alugar. E em poucos dias ela já tinha uma nova casa.

A vizinhança com a irmã, com quem compartilhou tantas brincadeiras no interior, foi uma das bênçãos que a Mãezinha recebeu de Deus ao inaugurar sua experiência de vida urbana. Juntas, elas costumam revisitar temas importantes de memória comum.

Estar perto dos três filhos – meu irmão Paulo, eu e a Cynara – passou também a ser uma grata oportunidade de voltar a uma convivência mais frequente e afetuosa com quem deu à luz e criou com o melhor do amor de mãe.

Dentre as outras dádivas divinas recebidas por ela em seu primeiro ano de domicílio em Fortaleza, percebo o vínculo com amigas na mesma faixa de idade, em um grupo divertidamente autodenominado “As Meninas da Praça”, como uma das mais preciosas.

É tão lindo esse encontro de queridas todo final de tarde, em frente à banca de revistas do Sr. Erivaldo, que, muitas vezes, sem me deixar notar, passo por lá apenas para ficar apreciando o converseiro delas.

O que mais me impressiona na minha mãe é a sábia abertura que ela tem para tudo. Vamos ao cinema? Vamos! Vamos ver um show? Vamos! Tomar sorvete? Vamos! Pra feirinha de artesanato? Sim! Ver o pôr do sol na beira mar? Vou me arrumar!

Preocupado para que ela tivesse uma rotina de atividades, até como forma de não perder a noção do tempo, matriculei-a em uma hidroginástica. Ela foi ali por uns dias e depois telefonou para mim dizendo que havia mudado para fazer Pilates.

Fiquei animado com a atitude dela e resolvi testar os limites da sua abertura. Por sugestão da Andréa perguntei se ela aceitaria estudar música, na mesma escola dos nossos filhos, Lucas e Artur. Foi emocionante vê-la aceitar de pronto participar de algo pelo qual nunca imaginou que passaria.

Falei com a professora Angelita Ribeiro que, generosa e pessoalmente, vem trabalhando elementos de percussão e de canto com ela. A Mãezinha sempre me chamou a atenção pela sensibilidade com a beleza, mas confesso que fiquei surpreso com a sua musicalidade instintiva.

Quando a escuto cantarolando, sinto que há uma ternura na paisagem do lugar interior que ela carrega consigo. Um mundo que se expressa por meio do seu sorriso cativante.

São Paulo, 20 de outubro de 2016