Sociedade, cultura e poder com alma
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 23 de novembro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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As movimentações pelas ruas e pelas redes digitais mostram que as velhas dicotomias entre opressores e oprimidos, conservadores e progressistas, esquerda e direita, competitivos e cooperativos, celebridades e anônimos ainda estão sob os principais holofotes, muitos deles com cores hedonistas e projeções de autoenganos democráticos. Todos esses temas são importantes, mas se igualam na estrutura do pensamento que coopta ou elimina seus críticos manifestos.

A dificuldade de busca por fontes alternativas ao pensamento político dominante está associada a uma questão de fundo que é o conflito entre os modelos mentais de colonizado e não colonizado. Este é o tema do livro A Imaginação Emancipatória (Ed. UFMG, 2015), do pensador indiano Ashis Nandy, com textos selecionados pela professora Lúcia Rabello de Castro, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ashis Nandy (79) sustenta que o modelo mental de colonizado só será superado quando combatido no plano psicológico e cultural, e não em estratégias de contraviolência e suas táticas segregadoras e consumistas como hipóteses cidadãs. Nesse ponto, o autor se aproxima do líder rebelde sul-africano Nelson Mandela (1918 – 2013), pois ambos desenvolveram a convicção de que a emancipação dos mundos colonizados não se dará pela incitação do ódio ao colonizador.

Ele fala da infelicidade dos vitoriosos quando chegar o dia em que os que acumularam riqueza e poder explorando pessoas e destruindo os recursos naturais se sentirem humilhados ante a opinião pública. Se, ou quando, isso acontecer, os derrotados verão que não foi de todo inútil o seu sofrimento. Mas isso somente ocorrerá quando a sociedade puder sentir o significado da jornada do viver com um simples fechar de olhos ou saindo das molduras hegemônicas para escapar da ideia de felicidade como algo que pode ser adquirido.

Céus e infernos fazem parte da vida: “Pode-se ir ao céu e voltar, hospedar-se ou lutar com um deus ou demônio com impunidade, falar com uma árvore ou com os pássaros ao longo de um único dia e retornar sua vida social normal na manhã seguinte” (p.132). Ashis Nandy considera mais heroica a atitude dos que aceitaram a subjugação colonial, podendo assim guardar consigo os elementos essenciais da sua espiritualidade, do que a postura digna dos que não aceitaram a dominação e desapareceram juntamente com seus deuses.

É espetacular a análise que ele faz da estrutura cognitiva de figuras emblemáticas do seu país, como o escritor Rudyard Kipling (1862 – 1936) e o líder espiritual Sri Aurobindo (1872 – 1950). Kipling, criado na mais autêntica cultura indiana, tornou-se um ideólogo do direito da sua gente ser governada pela Grã-Bretanha, e Aurobindo, que foi educado para negar sua origem e ver a Inglaterra como sociedade ideal, lutou intensamente pela derrota do domínio britânico.

O pensamento de Nandy é fundamental para quem estiver disposto a rever conceitos de políticas civilizatórias. Nele, pode-se vislumbrar a sociedade como eixo do poder, mas a cultura como a alma da sociedade e do poder. A pauta comportamental do momento precisa ser sacudida por esse tipo de debate voltado para a valorização da cultura, de modo que não sigamos à mercê de poderes sem alma e sua obscura briga do poder pelo poder.