A deseducação no jogo escolar
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 07 de dezembro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Todo final de ano, época de matrícula escolar e de resultado de Enem e vestibulares, tem sido a mesma coisa: algumas escolas enchem as cidades de propaganda destacando seus alunos primeiros colocados. Intrigado com esse marketing das empresas de serviço de educação, o empresário Ricardo Semler verificou o quanto de desonestidade há por trás dessa gabação voltada ao convencimento dos pais na hora de decidir onde colocar os filhos para estudar.

Semler, que ficou conhecido no final da década de 1980 pela publicação do livro “Virando a própria mesa”, no qual trata de vícios empresariais autodestrutivos, estudou minunciosamente o ranking do Enem e, indignado com a farsa das escolas que apelam para esse tipo de expediente a fim de se venderem como vitoriosas, escreveu o artigo “Truque sujo no Enem”, publicado na Folha de São Paulo de 6/11/2016.

“A número 1 no ranking, uma pequena filial do Objetivo, com sufixo qualquer, participou com 41 alunos! Ora, se pegarmos a escola real deles, que fica no mesmo famoso endereço da av. Paulista, com 280 alunos participantes, a classificação cai para o 547º lugar”. A denúncia de Ricardo Semler pode ser muito bem aplicada a outras escolas que ardilosamente usam suas turmas mínimas com alto grau de desempenho “sob o comando de sargentos de prova” para dar a entender que esse é o seu padrão de ensino.

Pior do que essa tapeação em si é a exploração social e emocional que muitos desses estabelecimentos fazem com crianças e jovens, roubando-lhes a integridade nos relacionamentos e a experiência de uma infância e uma adolescência genuinamente autênticas, para reduzi-las a um estado de vir a ser um produto final na vida adulta. A respeito desse caso, o pensador indiano Ashis Nandy alerta para o risco de que quando esses estudantes ganham autonomia social e econômica às vezes é muito tarde para a autonomia psicológica: “A infância se tornou uma das maiores distopias do mundo moderno. O medo de ser infantil persegue todo adulto psicologicamente inseguro”.

Em seu artigo “Reconstruindo a infância – uma crítica à ideologia da idade adulta” (In: A imaginação emancipadora, UFMG, 2015), ele admite que a modernidade pode até ser vista como menos violenta para a criança, quando comparada com muitas sociedades antigas que abandonavam, mutilavam, aterrorizavam, abusavam sexualmente e praticavam o infanticídio como modo de vida. Entretanto, considera que houve mudanças qualitativas na opressão humana desde a infância, causadas pelas impessoais e uniformizadoras forças de uma consciência social dominada pela massificação.

Para afirmar que o opressor moderno é vazio, que vive com um senso esquizoide de falta de realidade e que legitima suas ações com base no princípio da razão instrumental, Nandy cita as milhares de crianças que morrem todos os anos, inclusive nos países ditos desenvolvidos, por maltrato físico, pressão psicológica, negligência severa e abusos sexuais, como vítimas de falta de sentido e de dificuldade do adulto de viver em mutualidade. É para esse tipo de cliente que existem as escolas indecorosas, pouco afeitas ao entendimento de que a infância é uma forma de viver e que meninas e meninos têm direito a uma história pessoal.