A cidade sem presente
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 02 de Novembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Setembro, outubro, novembro, dezembro… Esses meses de bê-erre-ó-bró costumam nos impor, com muito mais veemência, a chance de pensarmos os rumos do sertão. O calor, a sequidão, o olhar perdido de rostos desolados… Tudo tão previsível e tão à mingua, em pleno estágio de desertificação humana e ambiental. Os outros meses do ano conseguem travestir a realidade de miragens e esperanças efêmeras. Ano Novo, Carnaval, Dia de São José… Mas a estação do bê-erre-ó-bró, quando muito conta com o eterno assistencialismo oficial e, em ano de eleição, melhora um pouco a interiorização de renda com a tradicional compra desenfreada de votos.
Estive por esses dias em Independência, nos Inhamuns. Nasci e vivi meus primeiros dezesseis anos naquele lugar. Ao mesmo tempo em que aproveitei para recordar de um mundo estrelado e vivaz, que ficou guardado em meu coração, refleti com tristeza sobre o que está acontecendo com uma terra que não consegue chegar ao presente. As imagens de relativa fartura nos agitados dias de feira, das animadas festas populares, dos destemperos cangaceiros e das rodas de histórias de trancoso, dentre outras manifestações que chegam à minha memória, confirmam a existência de um passado vibrante, mesmo calcado no mando dos coronéis. Foi imperioso mudar. Entretanto, ainda não se conseguiu estabelecer um novo endereço no atual modelo baseado no crescimento econômico concentrador.
A situação de lugar sem presente decompõe traços culturais e esmorece sonhos. É difícil pensar em futuro, em voar alto, faltando o mínimo de terra sob os pés. Não fosse a capilaridade do dinheirinho dos aposentados e o rateio autocrático das verbas oficiais, o município seria um hífen no questionário populacional do IBGE. A cidade transformou-se em um exótico viveiro de antenas parabólicas. Parecem soníferas borboletas metálicas protegendo crisálidas humanas adotivas. Com a recente inauguração do açude Barra Velha, pelo menos nota-se reavivada a expectativa de que, se ele um dia encher, o fantasma da falta de água será afugentado. Mas não dá para viver às custas de uma fantasia tão rasa.
Conversei com muitas pessoas e deparei-me com uma iniciativa tímida, mas animadora. Não é uma idéia nova, nem parece estar fundamentada na sua dimensão mais grandiosa. Alguns empreendedores estão trabalhando para viabilizar um negócio de exploração de couro de ovinos e caprinos na região. Uma saída bem lembrada, embora contaminada pela lógica cartesiana da nossa economia zarolha. A potencialização da ovino-caprinocultura nos Inhamuns merece tratamento sistêmico, entrelaçando suas características culturais e ambientais, com a participação dos setores públicos, privados e, principalmente, das comunidades urbanas e rurais.
Vocação para a criação de ovinos e caprinos é o que há de sobra na região, independente da existência ou não de água em abundância. Sol para o reforço de peles sadias e resistentes, com certeza também não vai faltar. O aproveitamento dessa riqueza natural e cultural necessita, contudo, da determinação política de uma ação integrada. Mais do que vender a pele dos animais, cabe beneficiá-la e transformá-la, agregando valor e gerando renda para os pecuaristas, produtores de calçados e artesãos. Tanto o leite de ovelha como o de cabra, altamente cotados no mercado, podem ser refrigerados, transformados em iogurte, em pó, doce, queijo e outros derivados.
Para um projeto desses se firmar, seria imprescindível que boa parte dos investimentos fosse destinada à compreensão da população quanto ao seu valor social, cultural e econômico. Deste jeito, a herança criativa da nossa culinária, e seus variados pratos de carneiro, poderia somar-se às lendárias histórias de bodes traquinas em canções, poesias, artes plásticas, dança, teatro e o que a arte de viver mandasse. Vi há alguns anos um monumento ao criador de ovinos, na cidade de Punta Arenas, no sul do Chile, e nunca esqueci daquela demonstração pública de apreço. Em bronze, umas dez ovelhas lanudas dividem a rua principal em duas largas faixas, tangidas por um pastor e seu cajado. É bonito.
Independência poderia ter uma festa da ovino-caprinocultura. Seria mais do que uma exposição agropecuária tradicional. Estaria além dos negócios de compra e venda e bem acima dos espetáculos de aluguel arquitetados de fora para dentro. Aconteceria simultaneamente nas praças, no mercado público, nas ruas, nos bares, no clube, enfim, na cidade, sem a obrigação de obras dispendiosas específicas. Dá para criar um pólo cultural e econômico forte, capaz de beneficiar a maioria da população. É uma questão de atitude política, de querer social, de despertar cultural. Sentindo o cheiro da flor de pereiro, perfumando discretamente o ar puro do sertão, fiquei mais convencido ainda de que vale a pena exalar sonhos. Olhei para o céu e as nuvens branquinhas contrastavam o azul celeste desenhando carneirinhos…