Porque viver é mais que isso!
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 14 de dezembro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Os grupos Dona Zefinha, de Itapipoca (Brasil), e Pato Mojado, de Rosário (Argentina), não têm em comum apenas o fato de trabalharem com teatro e música. Ambos são latino-americanos e vivem um mesmo momento marcado pela desesperança no continente. Diante dos avanços dos retrocessos políticos, resolveram contar a história de Juan Perez da Silva, que, não aguentando mais tanta pressão, abandona o trabalho e sai em busca de tomar posse da vontade de descobrir outro sentido de destino.
O protagonista do espetáculo El hijo del las Américas / O filho das Américas vislumbra alguma revelação pelos caminhos da poética, do teatro, da música e da interculturalidade. Torna-se um andarilho, misto do Martín Fierro, de José Hernández (1834 – 1886), no seu esforço de afirmação em um mundo hostil dominado por estrangeiros, e Riobaldo, de Guimarães Rosa (1908 – 1967), e sua procura por respostas para questões existenciais.
A peça, apresentada domingo (11) passado no teatro do Centro Dragão do Mar, torna-se uma paródia dos tempos atuais ao problematizar a precária experiência da proteção social de pessoas em cenários de incertezas. A andança ganha movimento na expectativa fugidia do tentar apreender o que está acontecendo. O papel do vagar se realiza no modo como o anti-herói sul-americano se apropria do sentimento de que é preciso seguir andando, esticando territórios, canalizando, drenando e escoando a cultura como estratégia de sociabilidade continental.
A qualidade das atrizes e dos atores das duas companhias contribui muito para a riqueza desse espetáculo de integração cultural, que conta com o apoio do Prêmio Iberescena, mecanismo de fomento a grupos latino-americanos e espanhóis, para a produção e circulação de obras que combinem dramaturgia e música. Todo mundo faz um pouco de tudo no palco, o que imprime um caráter de organicidade irmã e hermana ao curso da ação.
Da Silva vale-se do direito natural de se deslocar sem o peso dos códigos de normalidade, como fazem as asas brancas e as andorinhas. Assim, ele vai ampliando perspectivas do diverso em encontros de plurilocalidades. Em suas andanças se descobre na relação com indígenas, policiais e camelôs. Do nordeste do Brasil, terra da Dona Zefinha, cruza com Virgulino Ferreira da Silva (1898 – 1938), o Lampião, e, do centro-leste da Argentina, terra do Pato Mojado, transita pelo livro de memórias de Ernesto Guevara (1928 – 1967), o Chê, em sua aventura de moto pela América do Sul.
Com bom humor, boa música, ludicidade, palhaçaria, um toque de micro-história e um portunhol impecável de ambos os grupos, El hijo del las Américas / O filho das Américas contagia o público por ser também parte da plateia na proximidade de suas interrogações provocadas pela ocupação do espaço político por um tipo de inimigo que está em toda parte e não é de nenhum lugar.
O crime de ócio cometido pelo protagonista é a caricatura da desvantajosa situação dos despossuídos de lideranças confiáveis em necessidade de rearticulação de cenários socioculturais e econômicos de um continente que está sob ataque conservador. Viver ficou perigoso e o palco mais uma vez é chamado à condição de nova fronteira política das práticas culturais.