Terra de brincantes
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 21 de dezembro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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As cidades são resultados de agregações humanas e suas ações individuais e coletivas. O que se vê em uma paisagem urbana é a materialização de relações que criam significado de acordo com suas preponderâncias culturais, sociais, econômicas, políticas ou religiosas.

A crise das metrópoles, com seus problemas de mobilidade, violência, poluição, lixo, especulação imobiliária, moradia, baixa cobertura vegetal e desigualdade de todo tipo pede novos sentidos que sejam capazes de torná-las mais habitáveis e de agradável convivência.

Às vezes, observando-se os avanços desmedidos da construção civil na geometria espacial, parece que tudo o mais que constitui os lugares da vida urbana não passa de sobra, de anulação do seu insaciável apetite. As cidades ainda dominadas por esse tipo de mentalidade tendem a ficar cada vez mais insuportáveis.

A situação das nossas metrópoles não é mais desoladora porque vez por outra a sociedade dá sinais de que existe outra cidade que não pode ser medida apenas por indicadores econômicos. É o caso do movimento de arte e cidadania que fez ressurgir o Instituto Brincante, em São Paulo, depois da sua ameaça de extinção.

O teatro-escola fundado em 1992 no bairro da Vila Madalena pelo músico, compositor, cantor, dançarino e pesquisador pernambucano Antônio Nóbrega e pela atriz, dançarina e arte-educadora paranaense Rosane Almeida funcionava em prédio alugado e, em 2014, recebeu uma ordem judicial de despejo.

Em vez de ficarem amedrontados, Nóbrega e Rosane juntaram-se a alunos, professores e pessoas que sabem da importância de espaços vitais para a sustentação social, como este, e partiram para o contra-ataque em uma mobilização que chegou a uma emblemática ciranda de dez mil pessoas no entorno do Auditório Ibirapuera em defesa do Brincante.

A campanha #FicaBrincante, de financiamento coletivo, em favor da permanência da instituição na Vila Madalena, contou com quase 800 colaboradores. O projeto foi doado pelo escritório Bernardes Arquitetura, o equipamento de som e luz pela Associação Novo Teatro de São Paulo, e os vidros e espelhos pela Abividro.

O casal Nóbrega e Rosane cedeu dois pequenos imóveis que tinha adquirido na mesma rua, e parte preponderante da verba de construção do novo Brincante foi doada pelo Instituto Alana, organização da sociedade civil que trabalha em prol de caminhos transformadores por meio das relações entre as pessoas, com atenção especial aos temas da infância.

E a nova sede do Brincante foi construída no tempo previsto, com reproduções fieis aos espaços anteriores para teatro e salas de aula. Estive lá na sexta-feira passada (16) para conhecer as novas instalações e ver o show-celebração dessa conquista, com Antônio Nóbrega e a cantora paulistana Mônica Salmaso.

Ao chegar à calçada da rua Purpurina, 412, senti o vento que, junto com os olhares dos transeuntes, passava pela estrutura de madeira inclinada que delimita, sem separar, a rua do pátio interno onde dançavam três pés de pitanga. Acompanhando a escada, como na velha sede, imagens em molduras diversas foram me contando feitos de produção, formação e multiplicação da arte e da cultura brasileira.

No piso superior, cheguei a outra área aberta de convivência que faz liga com os ares das calçadas por meio de uma árvore em floração. Em cada detalhe, um cuidado, um toque humanizante. Nem parecia estar em São Paulo, mas estava, porque, entre tantos dos seus atributos, São Paulo também é uma terra de brincantes.