Pensamentos perambulantes
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 11 de janeiro de 2017 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Sim, todo pensamento é perambulante, não há novidade nisso. Chega e vai, a gente querendo ou não. Mas eu conheci um escritor que aprendeu a capturar esses estalos súbitos da mente: Eno Theodoro Wanke (1929 – 2001). E foi exatamente neste momento em que o ano de 2017 já começou e eu ainda não consegui fechar as pendências de 2016 que, sem mais nem menos, chegou para mim um dos seus Clecs: “Antes de os relógios existirem, todos tinham tempo. Hoje, todos têm relógios”.

Lembrei-me de ter guardado alguns livros que o inventivo fabulador, poeta e clequista paranaense me enviava no tempo em que, juntamente com o brega star Falcão, eu editava o Um Jornal Sem Regras (1982 a 1985). Encontrei 10 dessas preciosas publicações, cada qual com 100 Clecs. Fui abrindo as páginas de cada um e me diverti como há muito não me divertia com essas frases moleques que passam rapidamente pela nossa cabeça a qualquer momento e em qualquer lugar. Compartilho algumas:

• Só um livro lido nos pertence realmente.

• Pensar que dentro de nossa cabeça há uma caveira rindo com os nossos próprios dentes.

• Sonho de menino: um balão entrar pela janela do seu quarto.

• Quando morrem, os aviões nunca mais vão pro céu.

• Vaso de flores em janela de ônibus poderia até enfeitar, mas parece que não dá certo.

• As verdades inventadas são, em geral, mais coerentes.

• Está provado por a + b que a + b não prova nada.

• Para o bom entendedor, pala basta.

• Quando um adjetivo mente, ele, por castigo, vira advérbio.

• Na escuridão os espelhos não funcionam.

• Mocotó é uma palavra a galope.

• Melhor perder o trem do que perder a linha.

• Quando uma guerra é declarada na Terra, o inferno entra em obras de ampliação.

• Era um sujeito tão truculento que não tinha contas a pagar. Só contas a ajustar.

• A moça dos seus sonhos declarou amá-lo. Mas isto não o fez feliz. Foi tudo um sonho.

• A centopeia não anda, desfila.

• O parque de diversão dos peixes é onde as ondas quebram.

• As estátuas de granito são mais imóveis do que as estátuas de mármore.

• Depois que você muda de fila é que a fila em que você estava começa a andar.

• O enterro da esperança é o único que não tem acompanhantes.

Wanke começou a brincadeira de pegar pensamentos perambulantes no ano de 1979, em um dia de ócio carnavalesco, na casa da família Schaffer, da sua mulher Irma, no bairro do Pilarzinho, em Curitiba. Estava lendo “Ave, Palavra!”, de Guimarães Rosa (1908 – 1967) e, entre uma nota de viagem, um poema, um conto e uma meditação dessa espécie de diário póstumo do escritor mineiro, ele começou a desenvolver sua arte de pensamentear.

Do simples entrar em um restaurante pululavam ideias como a de que o ovo frito põe poesia no prato feito por enfeitá-lo como se fosse uma margarida. Ou a de que o siri foi o genial inventor do periscópio, da tesoura e do balé. Se havia moscas no local ele pensava logo que, quando elas zumbem, é um sinal. “Um sinal de que há moscas”, ora.

Por muitos anos saiu anotando e publicando frases surrealistas, afirmações perplexas, rascunhos bem humorados do olhar, enfim, máximas repentinas, que ele chamava de Clecs. Nunca quis definir muito bem o que era isso porque acreditava que esse tipo de pensamento buliçoso, ao ganhar significado, poderia perder o seu poder de não ser nada.