Chamado do novo realismo
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 25 de janeiro de 2017 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A humanidade já passou por tantos momentos em que foi anunciada a proximidade do seu fim que não dá para pensar na inexistência de saídas para a atual crise resultante da radicalização do efêmero, da primazia do consumismo, do atropelamento do fato, da eleição da pós-verdade, da supremacia do vazio, da normatização do corpo e de outros exageros deformadores da modernidade. Nessa conjuntura, ganha expressão o “novo realismo”, escola de pensamento ontológico que procura o lugar do ser nos escombros da realidade.

O novo realismo trabalha com a consciência do que virá depois de saltarmos das caixas do “antirrealismo” filosófico. Seus pensadores partem do princípio de que se na natureza não existem príncipes e patrões é porque a sociedade os criou; entretanto, advertem, é preciso cautela para não seguir com o discurso de que tudo é socialmente construído, presente numa espécie de “alucinação coletiva”, cuja única vantagem é bajular narcisismos.

O filósofo alemão Markus Gabriel, um dos defensores da tese de que o mundo não depende totalmente da nossa capacidade manipulativa, aborda esse panorama filosófico em seu novo livro O Sentido de Existir (Civilização Brasileira, 2016), no qual ele, que é professor da Universidade de Bonn, demonstra convencimento da necessidade de tomarmos consciência da dimensão do hiper-real em que vivemos, a fim de que possamos deixar de pensar que dá para viver em uma grande bolha autoproduzida.

De leitura agradável e oportuna, essa obra traz alguns exemplos que facilitam a compreensão do leitor. Ao tempo em que afirma ser óbvio um carro fazer parte da criação humana, ele ressalta que não somos criadores do fato de produzirmos carros. Outra ilustração bem simples e reveladora da habilidade de Markus Gabriel expor suas ideias é quando ele diz que há coisas que dependem da nossa apreciação, como as coceiras, mas há outras que independem de nós, como a lua.

As árvores, esclarece, também não são, de forma geral ou metafísica, dependentes de um sujeito ou de uma subjetividade, porque não são propriedade de discursos; elas existem a despeito de opiniões. Gabriel é taxativo quando sustenta que nem todos os campos de sentido são interpretações, assim como nem todo sentido é uma forma de hermenêutica. Muito da consciência que criamos sobre determinadas coisas decorre simplesmente de paradigmas epistemológicos.

Articulado com o filósofo italiano Maurizio Ferraris, autor do Manifesto do Novo Realismo (2012), e com outros pensadores atemporais, Markus Gabriel coloca-se em posição contrária ao construtivismo dos fatos. Neste aspecto, ele não poupa autores como Immanuel Kant (1724 – 1804), por seu esquematismo na área cognitiva, que restringe a existência ao campo da experiência possível; nem Gilles Deleuze (1925 – 1995), cujo conceito de criação de sentido Gabriel considera um desagradável resquício da influência teológica medieval na mente moderna.

Os pontos que o autor põe em questão são atraentes por, antes de tudo, colocarem a existência como demandante de um campo de sentido, já que ela não é um fato. Neste caso, o sentido tem o caráter de dado, o que o leva a preceder a consciência e, portanto, a não poder ser construído. E para quem não acredita que vamos dar o passo seguinte da humanidade, Markus Gabriel lembra que a existência vem antes da verdade.