Aluga-se Fortaleza
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 30 de Novembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Elas estão nos muros, nas janelas dos apartamentos, nos postes e nas paredes dos edifícios. Não fosse a idéia fixa dos letreiros vermelhos, seria de se pensar que um novo adorno importado estaria contagiando Fortaleza. As placas de “Aluga-se” e “Vende-se” sufocam a atração florida das jardineiras, pontuando as paredes externas dos imóveis de lápides promocionais. Parecem pequenas bocas exibicionistas de gritos mudos disputando o nosso olhar com pertinência. Afetados pela omissão da faculdade de querer traduzir esse tipo de depoimento silencioso que a cidade revela, esquivamo-nos da responsabilidade de, pelo menos, procurar entender tão excêntrica ornamentação e, assim, ficamos supostamente imunes às suas causas e efeitos.
Ao negligenciarmos o significado desses avisos, por uma certa dislexia cotidiana, estamos na verdade decidindo esperar Godot. Tal qual a sina dos marcantes personagens de Samuel Beckett, caímos no engodo de aguardar por quem não ficou de vir. Mais do que isso, esperar Godot é também não saber o que a sua duvidosa chegada poderia significar. Assim, passamos os dias, enquanto as principais metrópoles do mundo procuram encontrar um jeito de recuperar os centros históricos que abandonaram. Fortaleza vem fazendo algum burburinho nesse sentido, mas cai em contradição ao elevar e inviabilizar simultaneamente o centrão da Aldeota e a fazer avançar o cinturão de pobreza da suburbanização.
O silêncio espantado desses crachás imobiliários denuncia a falta de planejamento urbano e um crescimento autofágico de uma época de empreendimentos pouco articulados e sem compromisso com a cidade. No desvario da individualidade míope, cercamos praças, igrejas, ruas e colocamos telas de proteção para segregações de consumo. Deixamo-nos depender de uma burocracia meritocrática e fisiológica, que está se lixando para a ocupação desordenada do solo, prédios fantasmas, insegurança, gambiarras viárias e o congestionamento do trânsito, desde que possa se esbaldar em gastos exorbitantes com intervenções isoladas. O resultado não poderia ser diferente de um colapso urbano.
Imagino que, se preservássemos todos os vazios ainda existentes para a recriação de ilhas verdes da esfera pública, poderíamos estancar essa sangria de qualidade de vida. Com mais pontos de encontro, mais praças, mais espaços livres para recreação, espetáculos e comícios, viveríamos mais adequados à nossa realidade. Em um lugar quente como Fortaleza, a vida deveria acontecer mais nas ruas arborizadas. A ação de um urbanismo pluridisciplinar fortaleceria o apego das pessoas pela cidade. Do modo solitário e matreiro que a nossa arquitetura permeia os interstícios urbanos, termina por encarecer o deslocamento habitacional e comercial — que exige novos investimentos com infra-estrutura.
A construção civil é um setor estranhamente poderoso. Vive chantageando a sociedade e o governo com o argumento de ser o maior empregador de mão-de-obra desqualificada. Não tenho como estipular quanto custa o financiamento de tantas construtoras e incorporadoras. Qualquer que seja o valor, com certeza sairia mais em conta investir para qualificar trabalhadores e torná-los aptos a serem geradores da própria renda. A caridade oficial, que mantém a dinâmica controvertida desse setor, pouco se justifica. Com dinheiro abundante, fácil e, quem sabe, talvez até bem “lavado”, os construtores não querem saber de código de postura municipal e muito menos de cidadania baldia.
O otimismo precipitado de uma elite inculta e desavisada fez convergir para Fortaleza a riqueza do interior. É, portanto, fora do comum o fato da cidade continuar crescendo tanto fisicamente sem uma visível sustentação econômica. Flats de luxo, apartamentos de padrão sofisticado e imponentes paraísos de compras com ar-refrigerado, apresentam-se com metro quadrado de alto valor. Sala para escritório tem a rodo para alugar, vender e trocar. Mas a máquina de fazer dinheiro continua construindo mais e mais. Não é uma produção por demanda, mas por justificativa de aplicação e manipulação de recursos. Depois de pronto, se o imóvel vai ser ocupado ou não, pouco importa.
Placas e mais placas decoram a cidade, anunciando esse grave descaso. Com os sentidos direcionados para a posse ou simplesmente usufruto de um pedacinho que seja disso tudo, as pessoas trabalham, trabalham, trabalham e pelo que se vê não parecem mais felizes. Tem alguma coisa errada nessa equação de vida. O estímulo ao desejo não afiança saciedade. Quando procuramos seguir o sonho dos outros, anulamos o nosso jeito de sonhar. As mensagens estampadas nas placas de “Aluga-se” e “Vende-se”, espalhadas pelas ruas, afloram do inconsciente de uma cidade aflita que pede amparo para poder nos oferecer mais entusiasmo de nela viver, fazer coisas e amar.