Ensaio final da nova ordem
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 07 de Dezembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Piadas sem graça, ilusionismo sem fascinação, malabarismo previsível e shows tradicionais de equitação geopolítica no picadeiro norte-americano. O encontro da Organização Mundial do Comércio, realizado em Seatle, EUA, travestiu-se de circo para dar ordem unida e enquadrar os países periféricos, a fim de colocá-los definitivamente a serviço das multinacionais. Pelo buraco da lona da participação brasileira, percebe-se que este foi o ensaio final da nova ordem. As indicações cênicas não deixam interrogações. Como não costumamos exercitar a sabedoria da dúvida, é muito provável que sigamos passivos no papel de atravessadores, nesse processo de expansão de mercados.
Até hoje o Brasil tem servido de polarizador na América do Sul. Foi assim no colonialismo, no imperialismo e agora, na globalização. Os dirigentes do País, de forma dolosa ou culposa, vêm adotando esse comportamento subserviente e vergonhoso. Insistimos em ser o que não podemos e nem temos razões culturais para querer. Tornamo-nos o que o humor popular chama de loura de farmácia. Assumimos uma série de tarefas, com a finalidade de aliviar resistências regionais, como é o caso do Mercosul, e não passamos de bons sargentos. De tanto andar a reboque, já não expressamos capacidade de nos impor. As queixas do representante brasileiro na reunião da OMC quanto ao protecionismo comercial dos países “ricos”, são procedentes, mas não repercutem. Quem é servil não tem voz.
Nesse jogo de espelhos do comércio mundial, apenas a União Européia, puxada pela França, acrescentou algumas novidades, ao defender que a cultura não é negociável, reformulando o conceito de “exceção cultural”, de conferências anteriores, para “diversidade cultural”. A idéia de que a cultura é um bem econômico diferente dos outros, entra meio atravessada na pauta e só consegue algum destaque porque a Europa vive sufocada pelos enlatados do rolo compressor da indústria de entretenimento estadunidense. Em busca de oxigênio para seus valores, os europeus defendem que deveria ser facultado a cada país definir suas políticas culturais, conforme suas próprias especificidades, evitando o que bem definiram como “poluição das sensibilidades”.
O conceito de livre comércio pregado pela OMC está mais para determinação dos caprichos de um suposto governo global do que para a montagem de um sistema de integração e redes de negócios. Os países que detém o controle das práticas econômicas e do poder bélico podem explorar nossos mercados e deixam bem claro que é bom a gente ficar longe dos consumidores deles. Neste aspecto, eles possuem uma terceira arma. Com certeza a mais poderosa. Através de filmes, discos, livros e da rede mundial de computadores, eles conseguiram espalhar o desejo de consumo da aparência, substância viscosa que têm para vender em abundância.
Ingressar na via contrária, como tentativa de igualar oportunidades, também não é fácil nem pode ser pensado em curto prazo. Primeiro, porque, detendo as rédeas do processo, eles preservam suas barreiras de proteção e aplicam tarifas insuportáveis na importação, subsidiando as exportações. É quase impossível competir assim. Segundo, e principalmente, porque a ausência de difusão sistemática dos nossos valores no exterior, nos isolam do contexto de consumo. As disciplinas sociais são diferentes. Para forçarmos uma via de mão dupla, temos muito ainda o que investir na nossa realidade interna, deixando de lado o anseio de atender as metas estatísticas dos nossos supostos credores internacionais.
Diante do espetáculo da Terceira Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, sinto reforçada em mim a vontade de viver em um país orientado por geopolítica com sotaque doméstico. Somos um mercado de 170 milhões de pessoas, vivendo em 8,5 milhões de quilômetros quadrados, com uma das maiores reservas de água potável do planeta, mestiços e falando a mesma língua… É muita coisa positiva em um mesmo lugar. Não dá mais para continuarmos atuando passivamente e de modo residual dos destinos da humanidade. Enquanto os países “ricos” subvencionam sua cultura e produção agropecuária por motivos econômicos e, como maneira especial de defender o meio ambiente, de estimular o equilíbrio da distribuição demográfica e de renda, o Brasil continua dilacerando os centros urbanos e apostando nas formas seletivas de crescimento, sem visualização de um projeto nacional.
No ensaio de Seattle, vimos que as cortinas estão abertas para o ato final da peça de expansão de domínio do nosso suntuoso mercado, que é a introdução dos alimentos geneticamente alterados, conhecidos como transgênicos. Os Estados Unidos são os maiores produtores dessas mercadorias que só reproduzem para uma única safra, obrigando o agricultor a depender eternamente do fornecedor dono da patente. Se chegarmos a esse estágio de sujeição, não há como pensar em final feliz. O governo gaúcho vem fazendo de tudo para banir os transgênicos do Rio Grande do Sul, mas alguns plantadores de grãos da região fazem parte dos que pouco estão ligando para o meio ambiente e para o destino da gente brasileira.
Sinceramente, não consigo entender essa acomodação nacional. Queria me orgulhar de ser cidadão em um país definido pela produção de produtos orgânicos, por exemplo. Existe uma tendência para o consumo de alimentos de qualidade, cultivados com respeito ambiental e com condições dignas de trabalho. Por que não saímos com os que estão na frente, pelo menos uma vez? Nas nossas embalagens leríamos “biodegradável” e “alimento orgânico”. Espalharíamos por onde pudéssemos que aqui, neste país que se chama Brasil, temos o compromisso com a produção de produtos orgânicos. Não é impossível, desde que passemos a priorizar o desenvolvimento em favor da maioria e não dos cartéis e monopólios econômicos. Em matéria de cultura, então, a criatividade da miscigenação brasileira é uma fonte inesgotável e abundante, pronta para o consumo interno e para a exportação. Mas essas e tantas outras opções que temos não são aceitas pelos “donos” da OMC e seguimos à deriva, aplaudindo o torpedo que nos acertou.
*Artigo publicado com o título “Ensaio final”.