Constituinte escolar
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 08 de Fevereiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Educar não é apenas uma virtude espiritual voluntariosa, é principalmente um compromisso de ética social e política. Assim, a história da educação pública vem sendo moldada nos seus pouco mais de dois séculos. Em um primeiro momento, a escola pública foi criada pela necessidade de nortear a juventude quanto aos parâmetros cívicos determinados pelo império russo. Com a efervescência do iluminismo, ganhou algum apelo cidadão, mas, via de regra, perdeu-se na exigência da qualificação especializada do avanço industrial e tecnológico. Herdamos toda essa limitação. Para completar, no Brasil que vivemos, a vitória parcial, mas bastante vantajosa, do neoliberalismo exasperado sobre a cidadania, reforça o quadro de exclusão tradicional do ensino público.
As estatísticas oficiais apresentadas indicam outra realidade, a realidade dos números maquiados. Colocam uma espécie de código de barras nas crianças e adolescentes matriculados, oferecendo-os em outdoor como chester para um futuro de mão-de-obra barata, em alguma generosa multinacional. Sem qualquer respeito à incipiente organização da nossa sociedade civil, fazem o dever de casa, ordenado pelo Fundo Monetário Internacional, e fragmentam cada vez mais a cadeia educativa basilar. Nesse descalabro, o exemplo do FUNDEF é patente: ao pagar por cabeça de cada criança, de sete a dez anos, que as prefeituras conseguirem inscrever em seus relatórios, o Fundo de Manutenção e Valorização do Ensino Fundamental e do seu Magistério, estimula os impassíveis executivos municipais a empolar as escolas com a matemática das matrículas, em busca do dinheiro fácil.
Por esse olhar, que tanto revela quanto esconde a agonia da nossa memória culpada, passa todo tipo de expectativa e desconfiança quanto à qualidade de ensino e à possibilidade de um dia atingirmos a consciência de que a escola pública, promotora do conhecimento para a cidadania, é a plataforma mais imprescindível ao desenvolvimento com equilíbrio e justiça social. É da responsabilidade municipal o atendimento prioritário à educação infantil (crianças até seis anos), mas sem computar a verba estipulada conforme a matrícula de cada criancinha, poucos prefeitos se interessam por esse “negócio”. Fica difícil entender essa equação, na qual o segundo estágio (ensino fundamental) não leva em conta o primeiro (educação infantil).
Com a proposta de construir coletivamente um projeto de educação de qualidade social, o governo petista do Rio Grande do Sul, vem, há um ano, nadando contra essa corrente demolidora da educação pública. Ao lançar, em janeiro de 1999, com previsão de término para dezembro de 2000, o movimento intitulado Constituinte Escolar, inaugura um processo admirável de definição de princípios e diretrizes da rede pública gaúcha. A mobilização em todo o Estado produziu um estudo da realidade regional contextualizada. Através de seminários, as temáticas estão sendo aprofundadas nas escolas. Em seguida, serão transformadas em um conjunto de preceitos que orientarão a reconstrução da ação político-pedagógica estadual, em todos os níveis.
O processo de participação da Constituinte Escolar é, em si, um produto bastante especial. A reflexão comunitária sobre o papel da educação e os seus principais resultados e estrangulamentos na vida das pessoas de cada região, incluindo o ambiente econômico, social e político a cada tempo discutido, mexe com a auto-estima e alimenta a consciência crítica. Ao responder se existe cooperação entre as secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social, no atendimento à educação infantil, pressupõe-se que o participante dos encontros pelo menos tende a se interessar para saber qual o papel de cada uma. O simples fato de alguém raciocinar sobre a razão de, em sua localidade, algumas crianças freqüentarem a escola e outras não, tentando encontrar explicações para tal apartação, vai clareando a desigualdade e desenhando uma nova feição de cultura política. Efeito que encontra causa na política de formulação, gestão democrática e inversão de prioridades, da secretária Lúcia Camini, da Educação.
A disposição de investir metade do período de governo para escutar diretamente a população, com a finalidade de elaborar e operar um plano educacional com ênfase nos interesses da maioria, mostra que o governo Olívio Dutra pensa no longo prazo. A firmeza das suas posições tem sido o diferencial da sua administração, quer no caso dos indesejáveis grãos transgênicos, na questão da guerra fiscal entre os estados ou na busca dos “outros quinhentos”, como forma de instigar uma nova versão para a mal-contada história brasileira. Em um País de escassas referências políticas comprometidas com a inclusão, a Constituinte Escolar gaúcha é ponto de inflexão positiva no presente cenário nacional. Governar com transparência, seriedade e competência também é educação pública.