Admirável Tita
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 21 de Março de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O bairro do Serviluz é marcado por todos os preconceitos que o nosso improviso urbano pôde criar. Hospedeiro do Farol Velho, sofre do julgamento discriminador dado à maioria das zonas portuárias. Habitado por gente simples e comprimido entre os cadeados da Praia Mansa, a parte descuidada da Praia do Futuro e os inflamáveis depósitos de combustível das distribuidoras de derivados de petróleo, pouco representa nas expectativas da apartação fortalezense. O temor que cultivamos contra as nossas possibilidades mascaradas pela aparência nunca poderia supor que, exatamente daquela área de esgotos a céu aberto, surgiria, por força da própria imposição da vida transbordante, a mais importante desportista cearense da atualidade.
Tita Tavares não tinha muita saída para o tamanho do ímpeto que agitava o seu mundo interior. Para as condições de vida que encontrou, desde que nasceu há pouco mais de duas décadas, seu desejo de conquista mais parecia um exótico prazer anti-social. Suas chances enfrentavam ainda o fato de ser filha de pescador sem-barco, baixinha, morena e metida a ter dignidade. Pelos caminhos escolares, não teria chance. Sonhar com emprego decente, seria loteria. Prostituição? Drogas? Manicômio? Restou-lhe olhar para a pequena nesga de mar da praia do Titanzinho, que banha a comunidade do Serviluz. Essa pequena faixa de areia é delimitada por espigões formados por enormes blocos de pedras, construídos para a contenção de correntes marítimas. Foi vagueando o olhar ao longo daquele corredor de ondas que dá no horizonte, que Tita descobriu um jeito de driblar a adversidade.
Quando a situação não é favorável pelas vias tradicionais, é sinal de que é preciso inventar caminhos pela imaginação, pela coragem de ousar, de dizer não e de querer mais. Tita não perdeu tempo com a angústia das panelas vazias. Provavelmente, teve a felicidade de não se deixar trair pelo que via, ouvia, vivia e sentia na pele. Preferiu apostar na intuição reparadora que a empurrava para as ondas do mais que minúsculo fragmento de Oceano Atlântico que batia à sua porta. Não encontrando motivos para desconfiar de si mesma, nem para ficar presa ao que os outros pensam, acreditam e cobram, ergueu a cabeça, escorregou suavemente na crista do mar revolto e, com audácia confrontou o inesperado. A oportunidade está sempre descansando em algum lugar do ambiente em que vivemos. Difícil é saber identificá-la, aceitá-la e estar aberto para compreender o lado oculto do óbvio.
Constatei o poder de consciência da própria respiração em Tita no dia em que a conheci. Eu embarcava no aeroporto de São Paulo, quando vi uma mocinha queimada de sol despachando uma prancha. Seu destino, como o meu, era Fortaleza. Não tive dúvidas, mas mesmo assim perguntei seu nome. Ela disse: “Tita”. Notei que havia um orgulho naquela expressão. Era o ano de 1998 e Tita Tavares acabara de ingressar na WQS (World Qualifying Series), a divisão de acesso à elite do circuito mundial de surfe. Apenas 15 (quinze) mulheres do planeta participam do WCT (World Championship Tour).
Ofereci a ela um exemplar da primeira edição do Guia de Praias do Ceará, que estávamos lançando nas livrarias dos principais aeroportos brasileiros. No verbete da praia do Titanzinho, havíamos colocado uma foto dela com a legenda: “A campeã Tita Tavares”. Folheou página por página. Silêncio mútuo. Ao fechar a publicação ela levantou a cabeça, olhou em meus olhos e disse: “Vou andar com este livrinho pelo mundo inteiro, para mostrar pras gringas como o lugar que eu moro é bonito”. Tita anda sozinha com o seu destemor, a prancha e uma pequena mochila. Sabe se virar com gestos e palavras soltas de várias línguas para pegar avião, táxi e para se hospedar. Aprendeu viajando. Suas despesas básicas são garantidas por um contrato de patrocínio com uma empresa cearense de confecções e artigos desportivos, a Maresia, que atua no mercado da chamada moda surfwear.
Em cada prova que se destaca Tita Tavares ganha dólares por pontuação. Não pega em dinheiro, nem anda com cheques. Após cada competição os organizadores fazem uma transferência bancária para o Brasil. Nessa brincadeira Tita já comprou um barco para o pai, construiu uma casa própria no Serviluz, incentiva a renovação de surfistas no Titanzinho e apóia a equipe de futebol do seu bairro. Mas a sua maior contribuição àquela comunidade é a construção de uma referência local. Aliás, se nós cearenses soubéssemos valorizar o que temos de mais precioso na nossa cultura, com certeza Tita seria mais festejada também por aqui. No lugar da indiferença, comumente deferida aos heróis que vêm das classes desfavorecidas, nossos governantes a receberiam com tapete vermelho e o todo o Ceará se orgulharia da sua bravura.
No noticiário internacional de esportes é costume ver o nome de Tita Tavares aparecer como pernambucana, carioca e catarinense. Ela está fazendo a parte dela. Precisamos fazer a nossa. Agora que começou o WTC 2000. Tita foi a terceira colocada na etapa da costa dourada da Austrália. Ficou atrás apenas da norte-americana Lisa Andersen, tetracampeã mundial, e da australiana Layne Beachley, que tem dois títulos mundiais. É a única brasileira na maior competição de surfe que existe. No ano passado, ela ficou em terceiro lugar no Qualifying e quinto no WCT. É uma desportista que cresce, que não negligencia o seu desejo, e não podemos ficar parados sem sequer acompanhar seus passos, torcer e vibrar por ela. Faltam onze etapas no mundial deste ano. Mais uma na Austrália, Taiti, África do Sul, Califórnia, duas na França, Espanha, Japão e duas no Havaí. Quando leio, quando vejo, quando escuto Tita, vem em mim a imagem das pranchas improvisadas em tábuas de barracos deslizando no top do surf mundial e o meu coração cearense, brasileiro e cidadão bate mais forte. Como forte somos quando queremos ser.