Estrada de ferro e internet
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 28 de Março de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os tempos são outros, a forma de interatividade é outra e a velocidade nem se compara, mas, em termos de impacto na evolução dos povos, a rede mundial de computadores não está tão distante da revolução causada pelas locomotivas na primeira metade do Século XIX. Ambas introduziram o sentido de entrelaçamento múltiplo na vida das pessoas, desorganizando a lógica cartesiana comumente orientadora do comportamento social. Com isso, abriram espaço para novas maneiras de afetividade, operação econômica e intercâmbio cultural.
É praticamente impossível descrever a perplexidade de quem se deparou com um trem pela primeira vez, quando os instrumentos de pedra e madeira, associados à ação dos músculos humanos e de animais, determinavam o desenvolvimento. Com muito esforço talvez sejamos capazes de conseguir pelo menos uma ligeira noção desse sentimento. Imaginando um imenso transporte todo de ferro, com motor próprio, fazendo o solo vibrar e sem fazer poeira que, ao invés de seguir as veredas tortuosas das carroças e carruagens, andava rápido, em linha reta e transportava um meio mundo de gente e carga de uma só vez, já é um bom exercício. “Vou depressa / Foge, bicho / Foge, povo / Passa ponte / Passa poste / Passa pasto / Passa boi / Passa boiada”. No poema “Trem de ferro”, o modernista pernambucano Manuel Bandeira (1886 – 1968) brinca com o tom categórico da imponente máquina.
Cruzando pontes, varando desertos, passando por penhascos vertiginosos e apitando na estação, o trem conserva até os dias de hoje o seu papel de protagonista insubstituível na formação do fascínio imprescindível à existência da arte. O cinema, a literatura, a pintura e a música universais estão aí para testemunhar o significado romântico e misterioso da rede ferroviária. Viagens, paisagens, guerras, fome, amor, migrações, fugas e encontros espetaculares integram o tom ocre das imagens geradas pelas histórias de trem, cujo efeito estético continua a se impor. Apenas a pretexto de ilustração quanto à importância do trem, basta dizer que, sem as linhas de ferro, não seríamos o país do futebol. A bola de futebol ganhou o Brasil nos pés dos engenheiros ingleses que trouxeram as locomotivas e vieram comandar a construção das estradas de ferro.
Por todos esses indícios costumo associar a ferrovia à internet. Com algumas adaptações e analogias. No lugar do som heavy metal das rodas de ferro, dos malotes de cartas que cruzavam os continentes sobre trilhos, da apreciação serena da paisagem pelas janelas dos vagões de passageiros, dos encontros e despedidas amorosos nas estações, do transporte de bens de consumo, do estouro das linhas com dinamite, dos assaltos aos trens pagadores, da busca de trabalho em outros lugares e do aprendizado através da relação direta entre diferentes; temos o barulhinho soft do modem, o correio eletrônico, a fantasia da ubiqüidade visual, o namoro virtual e seu baixo risco de contaminação, os balcões de vendas on line, os hackers, os roubos em transferências digitais, as homepages curriculares e o acesso à informação independente de contatos pessoais. Do mesmo jeito que o trem imprimiu uma velocidade diferenciada em seu tempo, a internet distingue-se pela instantaneidade. A infovia criou o chamado tempo real.
A rede ferroviária instilou a aproximação das pessoas, deu calor e fermento para a humanidade criar o fértil e controverso Século XX. A teia de fibra ótica faz a sua movimentação em massa sem necessidade de locomoção física e não dá para prever até onde iremos no Século XXI. A grande maioria dos habitantes do planeta vem sendo afetada pelos efeitos da internet, mas não tem acesso a ela. Para mim, o que tinha que ser feito em termos de mudança conceitual da relação em rede, está feito. Por muitos e muitos anos não teremos uma alteração como as que caracterizam a ferrovia e a infovia. As grandes mudanças continuarão acontecendo apenas na maneira de operacionalização dos efeitos da rede mundial de máquinas, tal como ocorreu com a chegada do trem. As operações comerciais, os suprimentos e a correlação de forças econômicas e culturais.
O fechamento da suposta rede democrática de computadores está chegando antes do que se imaginava. Como todo golpe, vem vestido de revolução. A revolução do acesso gratuito, das vantagens da utilização “sem custo” e da comodidade das informações filtradas. “Você não precisa ficar indo de site em site para ficar bem informado, a América Online faz isso por você”, diz a propaganda do maior portal de internet do mundo. Com tamanha “generosidade”, a competitividade dos pequenos provedores está abalada e, com ela, o sonho da comunicação livre. Caso a internet acabe no domínio de uma meia dúzia de grupos econômicos transnacionais, só teremos acesso às informações que forem do interesse deles e ficaremos prisioneiros da própria ignorância em sites e bytes. De tanto encanto, muitos foram atropelados pelos trens…