A profissão discriminada
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 04 de Abril de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Primeiro, o colonizador português escravizou a nossa matriz nativa para a extração do pau-brasil. Depois, traficou o negro da mãe África para garantir a competitividade agrícola e a exploração de bens minerais do Brasil colônia. Em meados do Século XIX, a entrada em cena dos imigrantes europeus sinalizou a inviabilidade econômica do modelo escravocrata. Essa sujeição à rentabilidade é a gênese do conceito de trabalho que herdamos e preservamos sem pudor. A nossa produção de bens e serviços nunca teve (nem tem) como destino a melhoria da nossa qualidade de vida. O melhor exemplo desse engano histórico é o fato de continuarmos tratando o empregado doméstico numa condição social inferior, simplesmente por ausência explícita de mais-valia. Trabalhar é um verbo intransitivo que fica substancialmente sem nexo quando em si é confundido com propriedade de terceiros.

Da promulgação da Lei Áurea, em 1888, à chegada da carteira de trabalho, nos anos 30, foram quatro décadas de ramerrame. Mais quatro décadas e, nos anos 70, o trabalho doméstico ganhou a Lei 5.859/1972, regulamentada no ano seguinte pelo Decreto 71.885, com restrições baseadas no caráter não lucrativo da atividade. Foi-se criando um ciclo de quarenta anos para esses passos decisivos. Como ainda faltam dez anos para a linha do tempo fixar mais um rastro na cadência morosa da evolução nas relações trabalhistas, algumas mudanças começam a ser esboçadas. Impossível prever se é ou não apenas uma nova “pegadinha” oficial. O fato é que a Medida Provisória de dezembro de 1999, regulamentada pelo Decreto 3361, de fevereiro deste ano, que entrou em vigor há poucos dias, dá ao trabalhador doméstico o direito comedido ao Fundo de Garantia. Com a inscrição no FGTS, ele passa a ter direito ao seguro-desemprego, em caso de demissão por justa causa. Por ser o depósito dos 8% facultativo ao empregador, os efeitos práticos são reduzidos, mas abranda a imprecisão profissional.

Fala-se muito em uma nova economia que seja capaz de frear o processo de desumanização contemporâneo. Mas como introduzir imaginação no cérebro matemático dos economistas? Qual a sinestesia possível? Enquanto o exercício regular da dúvida não vem, temos que começar pelo menos a mudar de vaidade. À medida que um jardim bem cuidado passar a valer mais do que um carro importado numa garagem fria, a organicidade cotidiana assume espontaneamente novas direções. No fundo, acho mesmo que todos nós gostaríamos de poder sentir permanentemente a alegria renovadora dos jardins em nossas vidas, mas nos falta coragem e por isso ser jardineiro não tem valor. O agnosticismo estabelecido é fruto das vítimas da aparência, do senso de fraqueza ainda dominante em uma sociedade onde a avareza se nutre da própria miséria que cria. É uma questão a se enfrentar com o auto-respeito, a auto-determinação e o reconhecimento dos tantos conflitos reais que mantemos por trás desse fingimento coletivo. Perdemos muito tempo com as aflições fantasmas dos diagnósticos das bulas externas.

Precisamos pensar o Brasil através de desejos mais legítimos. Quem puder pagar a cozinheira bem, que pague. O país está cheio dessas químicas naïf e a gente desperdiçando essa riqueza empurrando-as para ganhar salário mínimo nas sucatas fabris que chegam em busca de mão-de-obra barata e desarticulada. Quanto custa uma alimentação saborosa, uma casa limpa e bem arrumada? Deveríamos encontrar uma maneira de subsidiar o trabalho doméstico com decência, colocando-o como prioridade social. É o elo perdido entre o traço instituidor da nossa cultura e o que poderemos ser. Somos uma sociedade que gosta de dormir depois do almoço e estamos perdendo a noção do nosso tempo comunitário. Esse negócio de todo dia comer correndo desmonta a nossa diferença e nos enfraquece. O domesticídio que cometemos transparece o descuido estratégico que vivemos. O conhecimento acumulado e a habilidade da nossa força de trabalho doméstica é patrimônio nacional. Não se trata de terceira pessoa, conhecemos em nós esses personagens.

Por ser fruto de uma tragédia histórica indesejada, a esse traço especial da nossa cultura não nos cabe aplicar o preconceito que o poder econômico mundial ambiciona e quer no contexto da nossa lida diária. Estamos cansados de saber que o dinheiro não tem ética própria e que a ventura do poder de compra depende da aspiração. Seguir na ignorância funcional, no alheamento, é uma vingança suicida: erradicamos o passado cruel que atormenta a nossa razão justiceira pós-colonial para nos regozijarmos na tentativa de não-ser. O fenômeno psicossocial que atravessamos é tentador. Nele, o papel do empregado doméstico serve de termômetro. Quanto mais valorizarmos o suor de quem trabalha em favor do conforto e do prazer, mais estaremos refinando a nossa sorte. Sem insônia e sem semblante fatalista, acredito que é possível aliviar a nossa esperança atropelada para sermos socialmente mais saudáveis, menos estressados e menos gananciosos.