Brasil Compartilhado
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 11 de Abril de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Toda vez que me pego pensando no Brasil tenho a estranha sensação de desperdício. Abre-se em mim um vácuo de desconforto entre a superabundância e a deficiência. Como nos contos de fadas, sinto-me em uma terra encantada pela maldade da bruxa da dependência, cuja porção mágica restauradora perdemos nos labirintos da omissão e da ignorância. A ausência de visão de futuro, por falta de tempo histórico mais encorpado ou de mais vitórias das nossas insurgências pouco contadas, deixa-nos cada vez mais vulneráveis às aventuras do individualismo barato, limitado pelo instinto de sobrevivência na desertificação da ética.

A formação da brasilidade aparece em meu pensamento como uma nuvem que se esgarça e some deixando vestígios de imaginação sub-aproveitados. Por focarmos insistentemente os nossos objetivos imediatos, já não olhamos para o horizonte, já não levantamos a cabeça e não sabemos dos desenhos que as nuvens permitem que desvendemos em seus contornos e volumes. A busca da compreensão da importância de novos processos de desenvolvimento está sendo delineada em vários lugares brasileiros por muita gente que resolveu olhar longe, com paciência e espírito lúdico, para observar o que existe por trás dessas nuvens que passam discretamente sobre todos nós.

O encontro de experiências de gestão compartilhada e de estratégia de país, realizado com ousadia pelas consultorias Personal e Amana-Key, em Fortaleza, revelou ações e intenções da arte de, por sinergia e consentimento mútuo, “fazer o caminho ao andar”, tomando emprestado a expressão do poeta espanhol Antônio Machado. Incluindo o Ceará, apresentaram-se 20 estados brasileiros, o Distrito Federal e o município português de Palmela. O princípio da cooperação espontânea e includente entre as instâncias governamentais, de mercado e da sociedade, que caracteriza a cidadania compartilhada, aparecia e sumia entre uma história e outra. Há muito o que evoluir nesse sentido, mas o sucesso do evento foi medido pela riqueza das inovações, da vontade de não parar e da humildade do aprendizado do que somos e de como queremos e merecemos ser.

O despertar do desejo de mobilização é, por sua natureza, um fator transformador. A convivência seqüenciada entre diferentes, em favor do interesse comum, vai intensificando a participação das pessoas e transcendendo fronteiras geográficas e culturais. Os trabalhos exibidos foram classificados em âmbito estadual, microrregional, municipal e temático, para facilitar a sistematização do que foi apreendido e formulado. Embora com desníveis, muitas vezes acentuados, os exemplos apresentados levam ao reconhecimento de que o Brasil Compartilhado pode perfeitamente assumir a realização dos seus sonhos. Esses rompantes de inovação contribuem para o cumprimento do papel múltiplo, complementar e contraditório, da própria construção do sonho brasileiro.

Está dada a largada desse processo que nasce da prática, sem prescrições milagrosas e com bastante flexibilidade. Com seu jeito largado de valorizar e promover a interação de competências por prazer e crença, o sentido de teia da gestão compartilhada distancia-se das tradicionais participações temerosas, travestidas de democráticas pelos maquiadores da intolerância burocrática do autoritarismo. Não deve ser o único caminho nem a verdade salvadora. Mas já é visível, factível, possível de comparar. Autogestão, cogestão, gestão participativa e gestão compartilhada são processos que o tempo vem construindo em suas nuvens nem sempre com céu azulado ao fundo. Para muitos dos que estão entre nós, parece até desaforo essa conversa toda. A visão privativa dos sesmeiros ainda povoa a compreensão restrita e a concepção rígida do exercício do poder e controle da sociedade.

Precisamos acelerar o autodescobrimento do Brasil. A dispersão de sonhos, causada pelo desmonte dos anseios comunitários e nacionais em selvagens fragmentos individualistas, vai ficando cada vez mais difícil de corrigir. Adicionada a essa questão temos uma anomalia dura de debelar, que é a prepotência dos governantes que se crêem iluminados e confundem os seus interesses pessoais com os interesses da sociedade. E para completar, continuamos submetidos e influenciados pelas avaliações externas que nos desqualificam permanentemente, dando a impressão de que não somos capazes de tocar a nossa vida. São realidades intricadas a se enfrentar. A maior dificuldade é percebê-las como um problema para, assim, poder superá-las com criatividade e peito erguido. Quando estivermos dispostos a clarear os sentimentos e valores genuínos identificados como comuns em nosso sentimento mestiço, estaremos prontos para aproveitar melhor os esforços palmilhados em busca do Brasil Compartilhado.