Elogio da língua
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 18 de Abril de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A sutileza não poderia ser maior. A profundidade da observação também não. Chico Buarque, com a ardência da sua elegância estilística, leu o discurso em italiano. Falou dos dias de infância que passou em Roma, nos anos 50, das horas difíceis longe de um Brasil militarizado por volta de 1969 e da chegada para receber o prêmio da prefeitura romana tantos anos depois. Cada palavra, cada expressão e cada sentido sugerido pelo compositor libera um desejo de meditação. Além de prazeroso pela força estética, seu discurso toca em valores que agitam espíritos resistentes e sonhadores.
Das imagens esboçadas para o complemento subjetivo dos que tiveram acesso à sua fala, Chico Buarque me levou a refletir sobre dois momentos que decalcam aspectos do seu primeiro e do mais recente contato com Roma. Dois impactos culturais distintos, ocorridos em épocas diferentes, com personagens semelhantes. Duas visões, duas perplexidades. O olho do menino deslumbrado e o olhar do respeitado criador de tantas composições que engrandecem a gente brasileira e a música universal. Duas histórias para muitas interpretações.
No dia em que conheceu a professora de italiano do seu pai, o pequeno Francisco logo entendeu que havia chegado em um outro lugar, um país pobre saído de uma guerra atroz, mas com pessoas agradavelmente diferentes, com linguagem atraente e beleza própria. “A signorina era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enormes…”, descreve Chico. Passou a estudar em uma escola estadunidense e isso o incomodava, pois “os meninos norte-americanos não tinham o hábito ou a necessidade de falar a língua dos outros”. Diz que dentro da escola se sentia mais estrangeiro do que nas ruas.
Fazendo um corte no tempo e na seqüência estruturada do pensamento de Chico Buarque, salto para o final do seu texto, reproduzido há poucos dias pelo Jornal do Brasil, quando ele desembarca em Fiumicino. No aeroporto romano, de uma Itália agora rica, passa por todas as precauções a que são submetidos os detentores de um passaporte sul-americano. Quando consegue se liberar, é abordado por uma jovem que para ele parece familiar. “Uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professoressa de italiano”, descreve.
Em um primeiro instante, a impressão que Chico Buarque dá é a de ter reencontrado o encanto romano que conheceu quando tinha apenas oito anos. Mas ao dirigir-se à agente de turismo constatou que, apesar do arcabouço físico, ela não tinha nada de professora de italiano. “May I help you?”, perguntou com um sorriso de quem cumpre a função de ajudar. “No, grazie”, respondeu Chico Buarque, que completou: “il mio nome é Francesco”. Não sei o que ele pensou mais sobre o assunto, mas eu fiquei imaginando que tipo de alusão à realidade pôde fazer essa moça diante da situação. Se ainda houver cultura italiana na natureza da sua mente, com certeza o toque do Chico terá servido para realçar nuanças do seu querer.
Língua é poder. É a moeda dos signos. É o fio condutor da fruição social. Sem um vocabulário comum nenhuma gente tem sustentação. Mesmo com todas as dificuldades decorrentes da nossa fragilidade educacional, sinto-me bem falando português. Da tragédia da colonização aos dias atuais, compreendo a unidade lingüística nacional como o maior patrimônio resultante desse interregno de cinco séculos. Com todo o respeito aos idiomas autóctones, que devem ser resgatados, estudados e valorizados, precisamos cuidar da nossa língua e todas as adoções que a formaram. Esse português enriquecido com tupy, ioruba, latim, francês, espanhol, italiano, inglês e outros temperos orais e gramaticais, é a nossa representação inacabada no mundo.
O Brasil é o mais importante país lusofônico da terra. É urgente a nossa cooperação com as comunidades de língua portuguesa no contexto multipolar desenhado no horizonte da sombra que já está abaixo dos nossos pés. Angola, Benin, Cabo Verde, Goa, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e Portugal são nossos irmãos de fala e sotaques derivados, esse fator comum cuja função é mais importante do que a forma. Conhecendo mais a arte, os sonhos, as queixas, as alegrias e a história desse universo costurado pela língua portuguesa, com certeza ampliaremos o nosso conceito psicossocial de autodeterminação. Está fazendo falta. Pode vir a fazer muito mais.