Contadores de histórias
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 25 de Abril de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na calçada do Bar da Silva, na Varjota, Fernando Catatau me conta que não acha muito adequado chamar de mistura a holografia sonora da sua banda. Prefere dizer que faz combinações de influências. Elementos de jazz, salsa, blues, repente e baião chegam em suas composições sem avisar. Ele apenas equaliza o sabor de cada emoção que os estilos carregam, colocando um baixo de salsa em um reggae, dando ênfase ao silêncio, cuidando da dinâmica visual das trilhas que faz do cotidiano: climas, dramas, exaltações e recuos no jogo dos sentimentos, em uma linguagem identificada com os códigos atuais.
Movido pela importância da imagem no discurso, o líder da banda Cidadão Instigado explica o fenômeno da sua música híbrida como um sofisticado confeiteiro popular. Usa o exemplo da combinação de um pedaço de rapadura com creme de leite. Na busca do paladar ideal, vai dosando a quantidade de cada um. Nem a rapadura nem o creme perdem o gosto original e a sobremesa tem a delícia customizada que o talento é capaz de produzir. Sem dúvida que o resultado é bem diferente de uma mistura feita com os mesmos ingredientes em um multiprocessador. Neste caso, o terceiro sabor não permite a distinção das delícias e texturas dos elementos adicionados.
O descompromisso com a busca de fórmulas de sucesso é uma característica reveladora da essência da Cidadão Instigado. A função da arte deixa de correr atrás do refrão artificializado, comumente perseguido pela turma do topa-tudo-por-dinheiro, para encontrar um sentido mais precioso, mais essencial ao prazer estético. Sintonizada com o seu tempo, a banda respira o mesmo oxigênio inovador que deu vida ao mangue-beat, a Manu Chao, a Tom Zé, a Banda Cabaçal e a outros criadores reconhecidamente contemporâneos. As composições de Fernando Catatau surpreendem pela voz atrevida dos contadores de histórias. São incursões pelo terreno conflituoso do dia-a-dia. Crônicas quase biológicas, nascidas da vulnerabilidade social e sedimentadas em sons cortantes levados às últimas conseqüências.
O próprio nome Cidadão Instigado exprime a conjugação de expressões inquietantes. A realidade feita de descasos e impunidades torna-se cada vez mais uma grande provocação. Fernando Catatau, com enfoques incomuns, pergunta o que fazer diante do consenso por valores miúdos, individualistas e desonestos reinantes. Sem indicação visível de respostas e inconformado com o que chama de esfacelamento arquitetônico e cultural de Fortaleza, chegou a se mudar para o sudeste. “Eu vim do Ceará procurar alguma coisa que eu não tinha lá, muitos sonhos na cabeça…” (Um nordestino no concreto”). Foi bom para descobrir afinidades perdidas e começar a construir ideais comuns. Principalmente o de retornar às origens e irradiar novas perspectivas artísticas.
Essa incitação encontrou cumplicidade em Pernambuco, mas no Ceará Fernando Catatau ficou isolado com a sua atitude transfiguradora. Honramos muito pouco por aqui a memória insurgente dos nossos ancestrais. Deixamos que a força dos dinossauros siga determinando os nossos rumos culturais, com a intolerância dos seus dogmas egocêntricos. E a banda Cidadão Instigado acabou se relacionando mais com os pernambucanos do que no acuado meio musical cearense. Em 1998 tocou em Recife no festival alternativo “Abrindo o gás”, um dia antes do Abril Pro-Rock. No ano seguinte, Catatau se apresentou sozinho, um dia depois, na festa “Vomitando laser” do DJ Dolores (Hélder Aragão) e no dia sete passado foi intensamente aplaudido com sua banda no palco principal do Abril Pro-Rock 2000.
O reconhecimento de público e de crítica abre nova fase de convites na vida do grupo, formado por Fernando Catatau (guitarra, voz e teclado), Zé Rian (baixo e vocal), Dustan Galas (caixa e pratos) e Régis Damasceno (guitarra sintetizada e percussão). Nesta mais recente apresentação, a banda contou com Ricardo Pontes (zabumba), como convidado especial. Os principais jornais brasileiros e as televisões que abrem espaços não-comerciais para a cultura, cobriram o show da Cidadão Instigado em Recife. Os artigos assinados e os comentários de tevê interpretaram o som da banda cearense como música visual, por seu forte conteúdo imagético. Da mesma maneira que as letras descrevem passos e descompassos cotidianos, a melodia, a harmonia e o ritmo complementam o jeito de trilha da vida, permitindo improvisações e performances alteradas ao sabor dos instantes.
Conheço o CD demo da banda Cidadão Instigado e já vi algumas das suas raras apresentações em Fortaleza. É impressionante como ela dá um chega pra lá no complexo de inferioridade que aprisiona e retarda a ascensão de novos talentos da nossa música, tão rica em seus contrastes e tão cheia de valores individuais. Mas esse complexo de inferioridade é como o que se faz da seca, como o que se faz da fome e de outras desgraças que dão lucro e mantém as desigualdades estáveis, beneficiando as tradicionais minorias. Qualquer atualização de olhar é acusada de traição cultural e condenada à própria sorte. A imobilidade criativa dos fósseis não suporta atitudes. Querem vassalos para mascar e cuspir quando o gosto acabar. O tempo passa e é imponderável. Fernando Catatau e os cidadãos instigados da sua banda sabem que é preciso acompanhar a evolução do querer e do fazer, e vão contando suas histórias.