Nossa cara de Rachel
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 23 de Maio de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Faltam seis meses para os 90 anos de Rachel de Queiroz. A Academia Brasileira de Letras está com uma exposição de objetos e fotos da escritora em todo um andar da sua sede no Rio de Janeiro. Pernambuco, através da sua lei de incentivo à cultura, prepara-se para filmar Memorial de Maria Moura, com direção de Leilane Fernandes. O Brasil reconhece Rachel pela consistência de uma obra construída com passos ousados e delineadores da cultura nacional. Até agora não fizemos nada no Ceará para nos reconhecermos nessa data redonda, quando deveríamos festejar o ano inteiro, como o aniversário de cada um de nós, a mais cearense das nossas personalidades. A redução deste fato a uma homenagem de gala à ilustre filha nonagenária, em novembro, apenas atestará que não a conhecemos como deveríamos e o quanto estamos perdidos nos labirintos das artificialidades.
Por onde anda, Rachel de Queiroz leva o princípio ativo da cearensidade. É largada, espirituosa, irônica, entusiasta, anárquica, estóica e nunca deixou de se alimentar do ar, da luz, do calor humano e da paisagem ardente do sertão. Mesmo radicada no sudeste, não perdeu a mania de sonhar com um mundo esverdeado capaz de dar pulsão aos tons cinza da irrealidade nordestina. A celebridade não a empurrou para o culto aos jardins de inverno particulares. Sempre utilizou o seu talento para romper com a pose e espargir a sabedoria da simplicidade. É mais esperançosa do que otimista. Uma diferença que leva a notabilidade a não querer ser estátua, a não aceitar ficar parada vendo o movimento da praça. Rachel é a própria praça, a feira, os passos dos caminhantes, a heráldica espiritual da sua gente… interiorana e universal.
O vínculo indissolúvel de Rachel de Queiroz com o Ceará é tão bem tecido que muitas vezes ela exagera na difusão dos nossos valores. Chega a ver maravilhas políticas onde predominam os indicadores da propaganda. Seus desejos por uma terra melhor, mais desenvolvida e de manter as possibilidades acesas, parecem jogar miragens na sua mente criadora. Lapsos de auto-engano ou não, o importante é que ela acredita em nós cearenses, na nossa felicidade, na nossa capacidade de reversão histórica. Nascida em Fortaleza, mas criada em Quixadá, Rachel fincou raízes entre os monólitos lunares da região. Conquistou seu espaço na galeria dos grandes escritores brasileiros, mas teve a prudência de conservar a sua fazenda, que tem o curioso e agradável nome de “Não me deixes”. Um lugar que fala, que roga. Uma lembrança que avisa.
Quando garota, lançou, independente de editora, o romance regionalista “O Quinze”, inaugurando a literatura moderna no Brasil e chocando uma sociedade despreparada para acreditar nas mulheres e nos jovens. Décadas depois tornou-se a primeira mulher a entrar na conservadora Academia Brasileira de Letras. Foi também a primeira a presidi-la. Desdenhando, como é sua característica, do que para muitos significa a glória, Rachel costuma dizer que deixava de estar com os amigos porque eles iam para a ABL, portanto o jeito foi se tornar imortal para não perder o papo. Essa é a nossa Rachel, a demolidora das banalidades que contaminam o senso comum. Imune às solicitações constantes da vaidade, inscreveu, com inteligência e determinação, o seu nome nos compêndios de um país ferrado pelo machismo, paternalismo e patriarcalismo.
Essa força, capaz de mostrar que a luz do arrebatamento está presente na escuridão das normas sociais, aparece na sua obra com a sutileza que separa o vulgar do genial. Frases claras, bem construídas, boas de ler, de dialogar silenciosamente. Por onde quer que seus leitores tenham cruzado com a sua geografia literária, não é difícil notar que a realidade fica tão próxima que parece ficção. Na natureza de romances como As Três Marias, Dora Doralina, Memorial de Maria Moura e João Miguel; na informalidade sem disfarce das inúmeras crônicas semanais publicadas na imprensa brasileira; nas minisséries para a televisão e em suas entrevistas, ela está sempre arrumando uma maneira autêntica de desconcertar quem se mete a bacana.
Com letras madeirizadas, tal qual os vinhos escurecidos e saborosos, do texto de Rachel de Queiroz emana também o cheiro e o apuro que só a compreensão da desnecessariedade de licença possibilita. Agarrada à sinceridade sem etiqueta, conseguiu ser fiel à mulher e à escritora. Toda essa inteireza pessoal e intelectual foi indispensável para conduzi-la em sua missão de distinguir a nossa cara meio índia, meio tantas outras coisas e sentimentos. Rachel de Queiroz virou quase um pronome de Ceará. Carrega a nossa luminosidade no pensamento, transformando-a em clarividência depuradora de desolação. Tem o brilho mais sublime do nosso relicário. Tem a cara da porção mais louvável da cearensidade. Tem tutano e não é metida a besta.