Procura-se candidato
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 30 de Maio de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A política, como a atividade honrosa que é, não atende apenas por princípio às suas próprias necessidades. É um exercício de articulação, coragem, determinação e de vocação. Na verdade não existe vazio de poder. Quando a disposição dos que têm o coração político não ocupa essa tarefa, o espaço tende a ser invadido pelos garimpeiros de toda ordem de riqueza, infestando as câmaras, assembléias e os órgãos executivos públicos, de balcões de negócios. A gênese do parasitismo colonial ainda reina na política brasileira. Temos tido poucos políticos capazes de zelar pelo sentido público como um devoto cuida do seu altar, o pescador do seu barco e a mãe do seu bebê.

Vivemos mais um ano eleitoral. Deveríamos andar risonhos pelas calçadas por termos conquistado o direito de votar e escolher a nossa representação política formal. É incrível como nesses períodos, em que a população precisa de informações e de um pouco de sossego para meditar e tomar suas posições, aumentam-se as turbulências que confundem as instituições com muitos dos mercenários que as mantêm sob controle. O Executivo aparece legislando, o Legislativo julgando e o Judiciário na festa das leis do mercado. Ao invés de servir de base para o eleitor, a maneira enleada da apresentação dos escândalos nacionais cumpre a função de indispor as pessoas para com o processo político.

O efeito desse alheamento é a baixa confiabilidade institucional e a crise de irrealismo social, que levam a população a se afirmar na integração excludente das novelas de televisão e a negar a incompatilibidade da semelhança apresentada no horário eleitoral gratuito. A descrença generalizada leva ao fastio cívico do eleitor e ao recuo dos que têm inclinação para o trato das relações humanas, mas não se candidatam por conta do receio de serem confundidos com os tantos impostores que usam os instrumentos públicos da democracia para obter superabundância de vantagens particulares. Nesse ínterim, os canais ficam livres e as estradas pavimentadas para a prática da ética das pesquisas induzidas, da sedução dos palcos eletrônicos e do anacrônico voto de cabresto.

A impressão de que os políticos são todos iguais; que o Brasil não tem jeito porque já está inviabilizado pela corrupção; e que pensar diferente disso é assumir o papel de otário, somente atende aos interesses de quem está no poder se beneficiando do empobrecimento espiritual, moral e material da nação. O estabelecimento desse padrão de conduta perturba, corrói referências e deixa as pessoas sem saber como agir. Em uma sociedade aprisionada por violentos desníveis socioculturais, a sensação de não saber quem é polícia e quem é ladrão, quem é político e quem é vilão, acaba falando mais alto do que a ofensa engolida a contragosto, juntamente com toda a maquiagem eleitoral.

Da mesma forma que o sub-cidadão confunde o aparelho policial com a entidade polícia e com o próprio policial (que deveria oferecer segurança e às vezes é o ladrão) embaralha-se também a questão política, interpretando-se as entidades, os lugares onde funcionam e os seus representantes como uma coisa só. A senha para o voto consciente não está facilmente disponível. Os discursos foram misturados e prevalece a famigerada expressão ‘Isto é Brasil’ dominando o senso comum pelo condicionamento da descrença. As palavras parecem estar sem função, sem fonte de honestidade para respaldar seu próprio significado. No jogo da desinformação, os estereótipos do caráter nacional migram ao sabor das circunstâncias. O Brasil não se espatifou ainda, enquanto sociedade, porque subsiste uma moral conservadora, embora oscilante, na periferia e alguma visão de futuro ou de sobrevivência residual na nossa elite intelectual, política, cultural e econômica.

A responsabilidade com o nosso ritmo social para a priorização da qualidade de vida está fora de agendamento. Dissecar a miséria com sensacionalismos, causando desespero e compaixão, tem sido o artifício mais eficiente para a manutenção de privilégios graúdos e acessórios. Individualmente, em grupos, em organizações alternativas e em movimentos, as pessoas teimam admiravelmente em criar novos modelos de fazer política a partir da possibilidade de convergência de crenças e desejos – que muitas vezes não são formulados nem atendidos pelas esferas burocráticas do poder. Mas essa tendência ainda não amadureceu o suficiente para ter força de decisão. Há um teto baixo e quase impermeável, uma fronteira que divide o direito de participar e o de deliberar.

Essa limitação entre a força do sonho e o poder de transformá-lo em realidade coletiva passa pelos mecanismos e pelas estruturas políticas tradicionais. A definição e aplicação dos orçamentos públicos dependem mais dos interesses particulares dos políticos do que das necessidades da sociedade. É importante avançar na gestação de saídas, mas, até para que outros modelos vinguem com maior brevidade, devemos trabalhar para ampliar o número de políticos comprometidos com as relações políticas e não com transações comerciais. Temos que começar urgentemente a superar os desencantos com a política, para que as pessoas íntegras não deixem de se candidatar por vergonha e nós, eleitores, não continuemos pecando por omissão e incredulidade.