A coragem de perder
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 04 de Julho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Desde a quinta-feira passada que a lembrança de um fato esdrúxulo perturba o meu pensamento. Mas perturba de uma maneira insistente e dolorida como a recordação involuntária alfineta o coração do torcedor inconformado com a derrota do seu time preferido. Tentei dizer para mim mesmo que deixasse isso pra lá, que situações semelhantes acontecem constantemente em nossas vidas e que talvez as pessoas sequer notem racionalmente o que aconteceu. Como não? Questionei-me indignado. Duvido que a maioria não tenha ficado envergonhada com aquela intromissão. O tratamento dado ao incômodo pode ter sido diferente para cada um, mas senti na hora e na pele o desconforto cultural causado à maioria dos presentes.

A demonstração, mesmo velada, da contrariedade coletiva que vivenciei, como parte da multidão, aliviou em mim o receio momentâneo que tive de ter testemunhado o fim da nossa intra-utopia. Depois de respirar fundo e meditar com calma sobre tudo o que assistira, compreendi que aquela ação não passou de mas um pênalti indevidamente marcado contra o gol de uma sociedade, cuja defesa vem sendo historicamente devassada pela truculência e ausência de regras claras no jogo da hegemonia mundial. Não fomos vencidos. Na verdade, perdemos mais uma partida em que o juiz, com apoio do bandeirinha, favoreceu à outra equipe. É revoltante mas, felizmente, o espírito desportivo nos ensina que é preciso saber reconhecer o insucesso mesmo em circunstâncias duvidosas.

O maior legado que tirei desse episódio foi que precisamos ter coragem para perder. Existe um quê de bravura nesse exercício vital. Quem não ousa encarar a derrota como parte do desempenho de existir está fadado a comemorar vitórias dissimuladas. Na tentativa de esboçar semelhança com a mentalidade do “mundo desenvolvido”, tratamos muitas vezes de imitar situações legitimadoras desse desejo. Quem esteve na Vila Olímpica de Messejana no dia da entrega do selo Município Aprovado do Unicef, pôde passar por esse vexame. O apresentador oficial informou com veemência que durante a entrega dos prêmios aos municípios cearenses mais destacados no campo da educação, todos escutariam a música We are the world. Não foi piada, não. Seu inglês impostado não estava para brincadeira.

A exposição simbólica da presença do estado globalizante, enunciada nessa espécie de hino de comunhão dirigido à mão-de-obra barata residente no mercado periférico, atingiu em cheio o brio de uma audiência disposta a participar. We are the world é a versão atualizada de God save the queen, canção com a qual a coroa britânica obrigava as esquálidas criaturas das suas colônias asiáticas e africanas a saudarem a rainha. A recordação dessa imagem me fez sentir calafrios em pleno início de tarde quente. O que estariam pensando aquelas crianças de coração em festa, mas sem ter como acompanhar uma música soando em outro idioma? No mínimo sentiram-se inferiorizadas, inúteis, incompetentes e subdesenvolvidas.

A culpabilidade é um fenômeno da industrialização cultural. Se não falo inglês, supostamente não devo existir. A negligência é de quem ainda não conseguiu acomodar-se aos moldes das benfeitorias do “Primeiro Mundo”. Essa lógica, estimulada por situações desrespeitosas como a que ocorreu em Messejana, interfere nas relações interpessoais, afrouxa vínculos sociais e corrói valores, diminuindo a nossa resistência. Em um evento que trata de educação, portanto considerado importante no Ceará do analfabetismo, a imposição da música de invocação à divindade do vernáculo anglo-saxônico sugere, de imediato, um conflito de pertencimento: ser ou não ser de um povo, de um lugar, de uma cultura. Eis a shakespeareana questão.

Mesmo contido, o estorvo provocado pela execução de We are the world fez aquele dia simbolizar para mim um achado político e cultural de grande relevância. Bem mais do que com políticos e professores, o ginásio estava lotado por centenas de crianças provenientes de mais de vinte municípios cearenses. Não entendi a timidez, identificada na reação coletiva, como uma negação ao nosso poder de insurgência. Pelo contrário, o paradoxo da surpresa revelou que ainda preservamos valores latentes que, despertados, poderão ser capazes de restaurar a nossa liberdade de sonhar e a capacidade de reorientar o nosso futuro. Até agora o simulacro que nos governa não conseguiu soterrar as referências do nosso sentido fundador. Se no nosso íntimo, onde a coação para o enfileiramento não consegue chegar diretamente, guardamos forças para suportar tantas derrotas, é porque continuamos acreditando que, mais dia, menos dia, poderemos nos encontrar.