Canja de transgênicos
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 11 de Julho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Mais do que um direito de consumidor, é um direito humano a determinação de preservar a vida, a saúde, o meio ambiente e o controle da produção de alimentos, com o qual podemos contribuir significativamente para a consecução do desejo natural de perpetuação da espécie. Todos esses pontos decisivos estão envolvidos de uma só vez na questão dos transgênicos. Principalmente quando diz respeito a países de frágil autonomia política, como é o caso do Brasil. Trata-se portanto de um assunto que não deve passar à margem de um amplo movimento da sociedade, sob pena de ficar irreversível.

Os retalhos de informações, veiculados aleatoriamente, tendem a focar a superfície da questão e acabam desviando a nossa atenção para pontos específicos e isolados. Os motivos da proibição da entrada de grãos geneticamente alterados nos portos brasileiros perdem nitidez diante da liberação forçada pelo próprio governo. Nesse vaivém de liminares, ganha corpo a versão de que se o milho transgênico argentino e norte-americano, importado para ração animal, não desembarcar, teremos uma crise no abastecimento de frango. Estamos tão escaldados de crises, que a nossa primeira reação é evitar mais uma dor-de-cabeça.

É vergonhoso, mas o argumento vigente é que não temos uma produção de milho capaz de atender a demanda do setor avícola. Diante de uma revelação tão indecente, para um país com tanta área agricultável disponível, não dá para ficar parado vendo os produtores avícolas protestando com distribuição gratuita de frangos (aditivados com hormônios e alopatias) a populações carentes. Essa encenação toda não passa de uma disfarçada canja transgênica no banquete que as corporações multinacionais estão fazendo no mercado brasileiro. Festa nababesca que conta com a desvairada fome de poder dos nossos governantes. Até agora, em todo o país, apenas o governo do Rio Grande do Sul bateu no peito para dizer que aquele é “um estado livre de transgênicos”.

A Advocacia Geral da União vem trabalhando para dispensar os produtos transgênicos de estudos de impacto ambiental e de segurança alimentar. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança diz que o processo é inevitável e limita-se a defender a rotulação. Para completar a insensatez oficial de gestação e incubação do ovo da serpente, o Palácio do Planalto divulgou uma nota com a assinatura de seis ministros (Saúde, Meio Ambiente, Agricultura, Ciência e Tecnologia, Justiça e Casa Civil) em defesa da utilização de transgênicos no país. Nem o Codex Alimentarius, organismo de segurança alimentar da ONU, que defende os interesses de cúpula do capital multinacional, conseguiu tamanho consenso na reunião de maio de 2000, realizada no Canadá.

Há basicamente duas tendências mundiais conflitantes, quando esse tema entra em pauta. Uma, que defende a adulteração genética dos vegetais, visando resistência, produtividade, economia com agrotóxicos e aumento da massa alimentar de frutas, verduras e legumes, mas que está se lixando para os efeitos colaterais decorrentes da mudança. A outra, que pretende resguardar a qualidade dos alimentos, promovendo o cultivo orgânico e buscando mecanismos para o controle dos excessos de pesticidas, herbicidas, fungicidas e bactericidas usados nos plantios tradicionais. A corrente estadunidense é liderada pela Monsanto, empresa que responde por quarenta por cento da soja norte-americana e por mais de cinqüenta por cento da produção Argentina.

A Europa e o Japão estão em esforço contrário. Nesse sentido, empresas como o Carrefour estão lançando campanhas contra os transgênicos. Vale lembrar que o Carrefour já exportou este ano em torno de 150 toneladas de soja tradicional brasileira para a Europa. O mercado de orgânicos também começa a sair das hortas alternativas e das saladas, temperos, ervas finas e flores comestíveis dos restaurantes naturais, para a ocupação de nichos internos e a exportação de café, açúcar e suco de laranja. Enquanto isso, os nossos supermercados estão colocando lentamente nas prateleiras alimentos preparados com componentes mutantes. A lista vai crescendo. Inicialmente a Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde, chegou a denunciar e ameaçar o recolhimento de produtos notórios do nosso consumo, como o Nestogeno, da Nestlé, as misturas para sopas, da Refinações de Milho Brasil, as salsichas tipo Viena, da Swift, e o macarrão instantâneo com sabor de galinha, da Nissin Ajinomoto.

Com as pressões internacionais, que endureceram o governo federal em favor dos transgênicos, só uma considerável mobilização social será capaz de reverter esse quadro. Caso contrário, depois de emplacar a ração animal e legalizar compostos mutantes em produtos alimentícios considerados próprios para o consumo humano, entraremos na fase terminal da dependência, com a instituição do monopólio de sementes. É o seguinte: o grão transgênico, adquirido como ração, não se reproduz; e o grão comprado para a agricultura, torna-se estéril para novas plantações. É urgente que façamos alguma coisa. Ainda estamos numa fase que dá para conquistar uma política agrícola com equilíbrio ambiental, preservação da fertilidade do solo, produção de alimentos saudáveis e independência no fornecimento de grãos. Se deixarmos para amanhã, o tempo confundirá as causas e sentiremos saudade do futuro.

Direito de resposta, em 18 de abril de 2002, São Paulo

Escrito por Dalila Alves, Assessoria de Comunicação da Monsanto do Brasil

Caro Flávio Paiva,

Lemos com atenção sua coluna intitulada “Canja dos Transgênicos”, da edição de 11.07.00 e, embora saibamos que se trata de material opinativo, há afirmações sobre as quais gostaríamos de fazer alguns comentários:

  1. 1.“Há basicamente duas tendências mundiais conflitantes… Uma que defende a adulteração genética dos vegetais, visando resistência, produtividade, economia com agrotóxicos e aumento da massa alimentar de frutas, verduras e legumes, mas que está se lixando para os efeitos colaterais da mudança… A corrente estadunidense é liderada pela Monsanto, empresa que responde por 40% da soja norte-americana e por mais de 50% da produção argentina.”

Primeiro, a Monsanto não tem a exclusividade pela modificação genética dos vegetais , que você chama de “adulteração”. O homem vem trabalhando para aprimorar a qualidade das plantas há séculos, desde que começou a perceber que cruzando determinadas espécies entre si obteria variedades mais resistentes, mais produtivas ou de melhor sabor. A Monsanto é uma das pioneiras no uso da biotecnologia que nada mais que é do que uma ferramenta que torna o melhoramento convencional das plantas mais seguro. No melhoramento tradicional, cruzam-se as espécies através da combinação simultânea de vários genes e, ao se introduzir a característica pretendida, inúmeras outras acabam sendo agregadas. A biotecnologia, ao contrário, permite a inserção de um único gene, cuja característica é conhecida com antecedência, sem que o restante da cadeia de DNA seja alterado. Graças à precisão da biotecnologia, o prazo de desenvolvimento de novas variedades é menor e, principalmente, há mais segurança sobre o produto resultante do que com os métodos tradicionais.

Não é verdade que a Monsanto esteja “se lixando” para os efeitos colaterais das plantas geneticamente modificadas. Trata-se de uma empresa séria, com 99 anos no mercado norte-americano e 50 anos no Brasil. Nos Estados Unidos, os produtos derivados dessas plantas foram aprovados por órgãos rigorosos como o FDA (Food and Drug Administration) e são consumidos há cinco anos, sem o registro de casos de problemas de saúde.

Além disso, a biotecnologia das plantas não é exclusividade da empresa. Só no Brasil, além da Monsanto, há diversas outras instituições e empresas investindo em pesquisas sobre o assunto, entre as quais a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, Instituto Agronômico (IAC), Instituto Agronômico do Paraná, Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz, assim como a Copersucar, Novartis, AgrEvo, DuPont, Zeneca, Pioneer e Cyanamid, entre outras. Para sua informação, cerca de 120 instituições e empresas realizam pesquisas com transgênicos no País, e elas já fizeram requerimentos para a análise de 700 produtos diferentes junto à CTNBio – Comissão Técnica nacional de Biossegurança, órgão governamental responsável pelo assunto no Brasil.

É importante ressaltar que as plantas geneticamente modificadas já passaram por mais de 30 mil testes de campo em vários países, desde 1985. O seu uso tanto como ração animal como para alimentação humana vem ocorrendo desde 1995. Atualmente, há cerca de 60 diferentes culturas geneticamente modificadas em teste ou em consumo, sendo que as sete principais cultivadas comercialmente são soja, milho, algodão, canola, arroz, batata e tomate. Até o ano passado, 12 países já haviam adotado o plantio comercial de culturas geneticamente modificadas e nunca, absolutamente nunca, foi detectado qualquer problema de saúde que tenha sido ocasionado por alimento originário de planta geneticamente modificada.

Mais de 2,5 bilhões de pessoas no mundo consomem a soja geneticamente modificada diretamente ou em produtos da cadeia alimentar, sem que qualquer problema de segurança alimentar ou ambiental tenha sido detectado. Com relação à canola, sabe-se que responde por 75% do volume de óleo vegetal consumido pela população do Canadá, hoje de 30 milhões de pessoas. Os riscos oferecidos por alimento resultante de cultura geneticamente modificada são exatamente os mesmos oferecidos pelos produtos convencionais. Só terá alergia à soja geneticamente modificada, por exemplo, aquela pessoa que já for alérgica à soja cultivada pelos métodos tradicionais. Há cerca de 600 produtos originários de plantas geneticamente modificadas nas prateleiras dos supermercados americanos.

No Brasil, os alimentos são regulamentados e fiscalizados por instituições como o Serviço de Inspeção Federal (SIF), do Ministério da Agricultura e do Abastecimento. No caso específico dos produtos originários da biotecnologia, o Brasil tem a sua Lei de Biossegurança (Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995), que foi regulamentada pelo Decreto nº 1.752, de 20 de dezembro de 1995, e que, além de regular o uso da biotecnologia e a liberação no meio ambiente de plantas geneticamente modificadas, também dispõe sobre a vinculação, competência e composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, que integra a estrutura do Ministério da Ciência e Tecnologia e responde pelo acompanhamento do desenvolvimento e do progresso técnico-científico da biossegurança no Brasil, objetivando a segurança dos consumidores e da população em geral. Tudo isso mostra a preocupação governamental com a segurança de sua população e a real existência de leis e instrumentos que regulamentam a biotecnologia no Brasil.

  1. ‘É vergonhoso, mas o argumento vigente é que não temos uma produção de milho capaz de atender a demanda do setor avícola, etc. etc.”

Infelizmente, a produção brasileira de milho não atende a necessidade interna de consumo, segundo dados oficiais relativos à década inteira. Em 1994, por exemplo, o Brasil precisou importar 1,4 milhão de t de milho e, em 1998, outras 1,73 milhão de t. Sobre isso podemos dizer que ferramentas de alta produtividade como as de biotecnologia – usadas, por exemplo, pela nossa vizinha Argentina – poderiam, com certeza, ajudar a reverter esta situação. No ano passado, para uma produção de 32,4 milhões de toneladas de milho, houve a necessidade de importar 822,2 mil toneladas, a maior parte da Argentina (530,8 mil t), de acordo com o Ministério da Agricultura. Para este ano, segundo a mesma fonte, com a previsão de quebra de safra e aumento das necessidades internas de consumo, a demanda por importações está prevista para 2,1 milhões de t até dezembro. Deste total já foram importadas 864 mil toneladas (80% da Argentina).

  1. “…Caso contrário, depois de emplacar a ração animal e legalizar compostos mutantes em produtos alimentícios considerados próprios para o consumo humano, entraremos na fase terminal da dependência , com a instituição monopólio de sementes. É o seguinte: o grão transgênico, adquirido como ração, não se reproduz; e o grão comprado para a agricultura torna-se estéril para novas plantações.”

A Monsanto não possui nenhuma linha de pesquisa visando a obtenção de sementes estéreis. Além disso, o temor de uma única variedade de sementes sendo cultivada em larga escala não corresponde à realidade; a biotecnologia deve ser incorporada pelas variedades locais. Na prática , quem define qual semente será plantada é o agricultor. Ele deve ter a liberdade de escolher entre variedades obtidas pela biotecnologia ou optar por sementes desenvolvidas apenas pelo melhoramento tradicional. No Brasil, a Monsanto já cedeu o uso de sua tecnologia da soja Roundup Ready à Embrapa. Nos estados Unidos, a empresa cedeu essa mesma tecnologia a 200 empresas de sementes. A Monsanto não é uma empresa de sementes; é uma empresa de tecnologia de sementes.

Na esperança de que tenhamos conseguido esclarecer os principais pontos incorretos abordados em sua coluna, colocamo-nos à disposição para o fornecimento de outras informações que possam ser úteis para os leitores de O Povo.