Ciência de resultados
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 18 de Julho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tantas pesquisas e experimentos, adequados ao usufruto sensato da nossa biodiversidade, permanecem parados por falta de recursos ou seguem evoluindo precariamente ao sabor da dedicação e da paciência de alguns cientistas comprometidos com o meio ambiente e a cultura brasileira. Esse descaso faz parte da falta de rumos que aturde e desorienta o país. A ciência não é neutra e o nosso alto escalão científico vem demonstrando claramente, na questão dos alimentos geneticamente modificados, a sua subordinação aos interesses econômicos multinacionais que controlam a política e a economia brasileira.

O relatório em defesa dos transgênicos, assinado em Londres pela Academia Brasileira de Ciências, alega a tragédia da fome mundial como justificativa para a liberação precoce desses produtos. Mais uma vez a miséria serve de álibi para a promoção de tragédias lucrativas. A racionalidade científica tenta se distinguir na farsa criando recomendações totalmente descontextualizadas. De modo enviesadamente cínico transfere a responsabilidade da identificação e controle dos efeitos adversos, que venham a ser causados pelos organismos geneticamente alterados, para a saúde pública de países como o Brasil, onde as condições sanitárias rondam o fosso da precariedade.

Como o governo federal não está disposto a perder tempo escutando a sociedade, o foco da questão vem sendo desviado para as divergências quanto a expressão de rotulagem dos transgênicos. Essa discussão parte do princípio de que não temos a menor alternativa de rejeição e nem mesmo de adiamento da introdução definitiva desses alimentos no país. O apoio incondicional, político e científico, aos interesses das multinacionais e não da sociedade brasileira, é uma afronta à cidadania. É também uma maneira de testar o nosso grau de passividade diante das preocupações cotidianas e respeito às gerações futuras.

Em artigo recente, publicado no jornal Folha de São Paulo, a coordenadora-executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Marilena Lazzarini, externou sua inquietação com o rompimento do bom senso, do diálogo com quem estiver em posição contrária e o desrespeito a decisões judiciais que não atendam à vontade oficial. “É preciso ouvir o outro lado com a mesma e necessária presteza com que esses ministérios e seus órgãos competentes atendem aos pedidos das empresas transnacionais de biotecnologia”. Marilena, que é engenheira agrônoma, reforça os riscos dos efeitos nocivos dos transgênicos para a saúde humana, animal e para o meio ambiente.

Não é possível saber ainda quais seriam, ou serão, as conseqüências do cultivo e do consumo desses produtos. Não existem bulas, pois ainda não houve tempo suficiente para experiências nos mais variados climas e solos do planeta. O estágio sofisticado dessa criação de laboratório, não pode ser comparado a nada que as leis da natureza tenham desenvolvido ao longo de milênios. A “transfusão” de genes entre vegetais vai fundindo e transformando características aleatórias repassadas aos alimentos. O exemplo de que o leite da soja, modificada com gene de castanha-do-pará, causa alergia nas pessoas sensíveis à castanha-do-pará, faz parte do elenco de simplificações de defesa da rotulagem. A dificuldade de informações confiáveis nasce na própria incompreensão dos produtores rurais na hora de separar a sua produção.

Semear o mundo com grãos modificados em laboratórios, sem medir as conseqüências, é no mínimo insensatez. Tudo isso pode ou não dar numa praga de alimentos cancerígenos, em acidentes ecológicos provocados por poluentes mutantes e em incontroláveis versões de fauna e flora. A humanidade deve aplaudir os avanços das suas pesquisas, mas não cabe à ciência nem à tecnologia determinar o tempo nem a forma de aplicação dessas descobertas. Muito menos aos interesses geopolíticos e mercantis de quem quer que seja. O monopólio de sementes, previsto para a etapa seguinte do processo de convencimento do consumo de transgênicos, abala frontalmente a agricultura familiar, eliminando-a ou transformando-a em apêndices sem qualquer autonomia. O argumento da fome é simbólico, mas não se justifica em si mesmo. Não seria diferente se estivéssemos sob uma campanha da indústria bélica, cuja formulação esbanjasse argumentos para que todos nós, individualmente, possuíssemos uma arma como condição para resolver o problema da segurança.

Mesmo supondo que os transgênicos não venham a produzir efeitos comprometedores, dificilmente a questão da fome seria solucionada basicamente por esse caminho. A fome não acontece de graça, ela faz parte do conflito político mundial. Está provado que existem alimentos para todos. Está provado também que a acumulação e o desperdício são os grandes agentes do contraste entre bem-alimentados e famintos. Pouco se vê ações sistemáticas de educação alimentar. As iniciativas nesse sentido são marginais. Sem mais nem menos, joga-se fora, todos os dias, toneladas e mais toneladas de cascas, sementes e farelos de alto teor nutritivo. Pena que cuidar da vida por caminhos mais saudáveis seja tão pouco lucrativo. Mais do que de transgênicos, precisamos mesmo é alimentar a consciência das verdadeiras causas da pobreza e, assim, tornarmo-nos capazes de inventar um pesticida espiritual e moral que dê um jeito de exterminar a ganância cega e sádica.