Cortejo da dignidade
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 25 de Julho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parece-me um estranho eco de pedido de socorro a quantidade de vezes que a palavra dignidade tem aparecido no nosso dia-a-dia. Dignidade a retalho, de significado muitas vezes circunstancial. Tenho notado um certo desejo de que o mundo que nos rodeia não fosse bem assim, que estivesse embasado em valores menos calculistas. Existe no ar uma sensação térmica de amor-próprio que não está contemplada na raiz quadrada do modelo vigente. Por não ter forma, nem tradução lógica, poucos de nós paramos para sentir o que estamos sentindo. Sem muito esforço identificamos nossos anseios na palavra dignidade. Sonhamos com uma vida digna, mas não nos dignamos a parar um pouquinho para refletir bem o que isso significa.
Diante da crise de confiança que consome nossos laços de convivência, lançamos mão da palavra dignidade mais como uma fuga do que por reconhecimento da necessidade de decência nas nossas relações. Há tantos significados de dignidade quantos são os nossos motivos e propósitos. Ao transferirmos impotência, prepotência, violência, abstinência, inadimplência e ambivalência para a proteção do guarda-chuva da dignidade, vamos tecendo uma longa rima sem poesia. Esse cortejo multifacetado burla o senso comum e subverte a ordem dos sentimentos. Quando alguém vê uma flor e diz que ela é tão bela que parece de plástico, nada mais está fazendo do que praticando uma contravenção natural.
O apelo à dignidade, sem a catálise do sentido humano, perde a propriedade transformadora e vira termo de efeito mercadológico. O primeiro sinal do ser vazio é a tentativa de representação do que ele não é. A linguagem nessa zona de farsa exibe códigos de suporte à cumplicidade da mentira. O preço para ser notado e acolhido na realidade distorcida é o permanente fingimento mútuo. A substituição dos múltiplos vínculos culturais pela alusão de estilos condicionantes, aventa uma hipotética valorização da independência individual, quando na verdade recai no seu enfraquecimento por omissão coletiva. O direito de escolha, recortado das causas comuns, faz parte do diagnóstico desse individualismo desesperado.
Em inumeráveis situações, somos atraídos quando invocados por alguma coisa que signifique dignidade. A impressão que dá é que qualquer dignidade tem servido. Na carência de valores que estamos, tem até axé music “analisando essa cadeia hereditária”. Na argumentação do seu “Discurso Elegantíssimo”, o filósofo italiano Giovanni Pico (1463-1494) define dignidade como a liberdade humana de determinação do caminho de ser. E liberdade para ele significava poder de ação de um ser pronto para tornar-se mais do que já é por natureza. “Poderás descer ao nível do embrutecimento, como poderás subir à dignificação divina. E isso pelo poder de tua decisão pessoal”. Dignidade, portanto, não se transfere nem se abdica.
O manifesto de Pico aparece em um momento histórico parecido com o que vivemos hoje. Pensando bem, a era das grandes navegações marítimas tem um paralelo simbólico com esses tempos de navegação virtual. Precisamos entender que a dignidade é a âncora das evoluções. Abrir mão de compreendê-la na sua essência é um risco que não vale a pena. Para o pensador do condado de Mirândola, os seres humanos deveriam cumprir a função de intérpretes da natureza inteira “pela agudeza dos sentidos, pela inquirição da mente e pela luz do intelecto; que é ainda o traço de ligação entre a eternidade imóvel e o tempo transitório”. A inércia diante dessa responsabilidade encantadora nos faz reféns do nosso próprio auto-engano quebradiço. Somos seres inacabados exatamente para podermos usufruir subjetivamente das belezas do mundo. Disso não podemos esquecer jamais!
Por qualquer inspiração escatológica que venha a nos meter em sistemas que neguem a dignidade humana, cabe-nos o direito e o dever de medir seus efeitos e continuidade. O deslumbre, a paixão e o desejo podem muitas vezes ser utilizados para criar dependências emotivas e retardar esse entendimento. Principalmente quando suas justas maravilhas são bem embaladas e antecipadas ao nosso bel-prazer. A nenhuma pessoa, organização ou nação foi dada a capacidade isolada de definir para as outras o que é digno. A dignidade está no ponto de equilíbrio de todos nós quando, independente de qualquer fator externo, respeitamos a nós mesmos e acreditamos que viver é diferente de operacionalizar a vida. Giovanni Pico via essa energia no cultivo do espírito. “Aliás, ensinou-me a mesma filosofia a depender mais de minha consciência e menos do juízo dos outros”. E complementa: “Se as forças desvanecerem, a audácia será tua glória; nas coisas excelsas já o querer vale muito”. O resto é conversa de vendedor.