Da necessidade de escrever
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 01 de Agosto de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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As nossas redações escolares sempre sofreram do ranço das amarras gramaticais. Como se gramática fosse uma coisa maçante. As limitações didáticas, que permeiam muitos dos ambientes educacionais brasileiros, foram anulando a fantasia da arte de escrever. Mais do que isso, foram reduzindo o prazer da leitura à vinculação de obras de lastro literário para concursos vestibulares. Como se não bastasse o nosso elevado índice de analfabetismo, tornamo-nos uma nação com preguiça de exercitar a liberdade de ler e de escrever.

Com a ampliação dos acessos à internet, começa a surgir no país uma nova variável no comportamento das nossas conversas por escrito. Toda uma geração que tinha trocado a carta pelo telefone, retomou a correspondência, através dos correios eletrônicos. Nunca se escreveu tanto quanto agora. O ciberespaço está cheio de garrafas com bilhetes eletrônicos transmitidos, a todo momento, entre as ilhas do mundo virtual, numa demonstração explícita de que continuamos dispostos a escrever. Essa manifestação nos dá também a oportunidade de ver o grau de deficiência a que chegamos em relação a nossa língua. A carência é quase generalizada. Erros ortográficos, de concordância e de formulação são encontrados facilmente em listas de adolescentes e até de grupos de acadêmicos com doutorado nas renomadas universidades internacionais.

Inconformados com o estilo sincopado que caracteriza a maioria das mensagens que circulam na rede de computadores, passamos a criticar a forma e o conteúdo desses escritos. Pensando bem, ao fazermos isso, mais uma vez agimos por coerção. A discussão sobre a propriedade dos temas abordados pela maioria dos internautas merece maior profundidade, exatamente por fazer parte da ressaca de desesperança e crise de inutilidade que causa enjôo precoce na jangada sem vela da democracia nacional. No que se refere à possibilidade dos “dialetos” das “tribos” terminarem ganhando expressividade, é apenas mais um risco de improvisação cultural a que nos expomos. Não há o que temer. Ao invés de malhar quem está tentando se comunicar, precisamos caminhar juntos e descobrir horizontes comuns.

A superação dessas insuficiências passa por um complexo conjunto de entendimentos. A desculpa da pressa é repassada para o suposto encolhimento do tempo presente. Perplexas, as pessoas tentam aprisionar as horas o quanto podem. Querem antecipar as gratificações possíveis por cada dia que escapam das múltiplas violências a que estão sujeitas. Parece sem jeito. Porém, valendo-me do meu otimismo congênito, cultivo esperanças com sol e chuva. Agarro-me a essa força da necessidade de escrever, que identifico em nós, para endossar a minha crença: enquanto a escrita, mesmo aviltada, for uma exigência da expressão das pessoas, haverá chance de correção de rumos.

Escrever é uma prova de vigor imaterial. Só escreve quem é capaz de pelo menos tentar compreender ou ter dúvida de alguma coisa. Mas isso só não basta, como não basta saber desenhar as palavras, para entrar nas estatísticas dos alfabetizados. Escrever é, antes de tudo, converter sentimentos em textos que traduzam de forma muda, estática, sem fotografia, sem cheiro e sem volume, a emoção motivadora que só a imaginação e o conhecimento do outro transforma em som, movimento, imagem, aroma e solidez. As expressões chegam muitas vezes como bebês no bico de cegonhas encantadas. De certa maneira, não é real o que dá vida à escrita. O texto acaba puxando novas idéias, falando de lá pra cá, como um interlocutor de sabedoria indescritível. Emociona-me notar o encaixe de uma palavra certa, que não sei como chegou para ajudar a me exprimir.

Talvez eu não devesse nem estar escrevendo sobre esse tema, já que tenho uma dificuldade tremenda de redigir. Mas pressinto que escrever contribui para não deixar o meu cérebro morrer. É também um meio do qual me valho para dividir pensamentos inquietos, para defender idéias e celebrar a vida. Leio devagar, com a mesma dificuldade com que escrevo. Por isso procuro ler apenas os livros que realmente me seduzem. Na condição de filho dos mistérios e conflitos do Brasil real, gosto mais do processo de viver do que de esperar por qualquer final. Não existe final. Considerar o processo é utópico, rompe a inércia e aponta sempre para novas possibilidades. É essa afeição pela vida em curso que me empurra para acreditar que, mesmo confusa, a potencialização do hábito de escrever, ofertada pela internet, pode ser um bom sinal de vida.