Cidadão do Século XXI
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 08 de Agosto de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Passeava no calçadão da beira-mar com o meu filho Lucas, quando uma senhora bem simpática se aproximou querendo fazer algumas gracinhas com ele. Depois da rápida brincadeira, ao despedirmo-nos, ela perguntou qual a idade do moleque. “14 meses”, respondi. A senhora levantou a cabeça, olhou no sentido das torres eólicas da Praia Mansa e exclamou: “Cidadão do Século XXI”. E retirou-se. Acenamos com um só adeus em duas mãos e seguimos a nossa caminhada, mas aquela expressão continuou perseguindo involuntariamente os meus pensamentos. Resolvi acolhê-la com naturalidade e, já em casa, quando o Lucas dormia, pus-me a olhar para o seu jeito largado no berço e a meditar sobre o que significaria ser “Cidadão do Século XXI”.
Cogitar hipóteses é sempre um bom exercício futurista. Serve pelo menos para inquietar a mente em tempos de dissolução e mutação de valores entre pouca visibilidade. Nessas horas, tenho a mania de migrar no tempo e ir ao encontro da nossa ancestralidade mais remota. Atrai-me a vitalidade de indivíduos que foram capazes de sobreviver à exaustiva seleção natural da Era Glacial e, com a habilidade que nos fez humanos, transformar o mundo tantas vezes e de tantas maneiras. A imagem que surge nesse retrovisor abstrato me diz que ainda estamos em fase de ajuste de sentidos e, por isso mesmo, presos a arquétipos limitantes do senso de desenvolvimento com equilíbrio.
Enquanto a nossa fonte de inspiração essencial permanecer restrita a qualquer poder de ordem teológica e econômica, dificilmente sairemos dessa longa fase de adaptação. O exemplo mais evidente desta realidade está presente nos dias de hoje. Aonde devem pedir exílio os refugiados da globalização? Parece uma pergunta sem resposta, mas não é. Todo enigma tem os seus códigos ocultos, que nascem das suposições intuitivas para em seguida serem testados pela ciência ou pelos arranjos do tempo. A era dos “refis” humanos, pode terminar com a descoberta da importância do patrimônio comum, forçada pela crise da água e do oxigênio.
O “Cidadão do Século XXI” construirá sua vida a partir das ruínas da Microsoft e da hipnose barbaramente mitificada pelas máquinas eletrônica conectadas. Os “Net Citizens” (cidadãos da rede), assim como os teólogos, na Idade Média, e os economistas pós-Revolução Industrial, não têm a competência para sozinhos oferecerem as condições de sustentabilidade que todo mundo deseja, mas a maioria não se dispõe a correr o risco de fazer valer. A chamada “nova casa da mente” é, neste aspecto, uma excepcional ferramenta de aproximação, mas não vai muito além disso. Da mesma maneira que a tragédia da “ajuda” internacional vem destruindo há séculos o continente africano, parte da Ásia e da América Latina, com sua política de promoção velada de conflitos, corrupção e dependência, por doenças e dívida externa, a nova economia poderá ser bloqueada se for confirmada a sua tendência de configuração democrática nos negócios.
Um vírus potente, bem nascido em laboratório, pode acabar de uma só vez com a rede mundial de computadores, da mesma maneira que o vírus da aids está acabando com a mão-de-obra excedente do Botsuana, país onde mais de dois terços da população é portadora do HIV. O Século XX está cheio deste tipo de caso dramático resultante da apartação econômica e social. Os homens-urubus, que aprenderam a planar nas correntes de ar quente do céu poluído de miséria, não cederão facilmente o lugar para o estabelecimento de uma tão almejada cultura de paz. O “Cidadão do Século XXI”, se quiser evitar a proliferação de guerras, precisa criar um poder conceitual paralelo, fortalecendo a alegria de viver, o respeito às diferenças e o desapego aos valores postiços.
O renascer da civilização no século que chega, passa pelo multiculturalismo e retoma a visão polivalente dos indivíduos, colocando-os no contexto de suas próprias comunidades, para que possam realmente se tornar universais. Os heróis do futuro talvez sejam cada vez mais anônimos e a sensatez cada vez mais coletiva. Há poucos dias vi uma reprise do filme “Spartacus”, épico dirigido por Stanley Kubrick, baseado no romance de Howard Fast, que conta uma rebelião de escravos nos idos do Império Romano. A primeira reação daquela gente, ao conquistar a liberdade, mesmo que passageira, foi colocar dois nobres romanos para se digladiarem. Quando Spartacus tomou conhecimento daquela situação, interferiu decididamente para suspendê-la e foi imediatamente questionado por outros escravos mais eufóricos, que alegaram não estar fazendo com os romanos nada mais do que os romanos faziam com eles. Spartacus respondeu: “Acontece que não somos nem queremos ser romanos”. E calou a fúria dos seus liderados.
Penso que o “Cidadão do Século XXI”, poderá reorientar o mundo usando até mesmo a e-imaginação na formatação da vida que virá. Mas isso só será possível se o território da mente ficar livre do fascínio das máquinas. Na época das grandes navegações, conhecer o mundo era imaginá-lo em toda a exuberância das suas diferenças e possibilidades. O pensamento das pessoas alargou-se tanto quanto a aventura de imaginar pôde acompanhar as travessias e suas histórias fantásticas, que conseguiram projetar a humanidade aos dias atuais. Essa é a condição sine qua non para um novo mundo, nem que seja um “nanomundo” submarino ou intergaláctico como o sono profundo de um bebê.