Nós, Vós… Elas
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 22 de Agosto de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando as condições ideais não existem, o jeito é inventar as soluções que as circunstâncias permitem. Esse não é o lema da personagem Darlene (Regina Casé) no filme “Eu Tu Eles”, porque ela não tem lema estruturado. Na trama da sobrevivência, sua força está na intuição e no desejo de construir pontes ao invés de alargar fossos. Inspirada em fatos reais da história de dona Marlene, uma cearense que conseguiu administrar a união de três maridos sob o mesmo teto, essa obra da cinematografia brasileira inaugura um modo sofisticado de abordagem dos nossos sentimentos populares.
O caso de poliandria clandestina da dona Marlene não é o primeiro, nem o único. Tampouco o último a acontecer Nordeste adentro. Quem conhece as entranhas do sertão sabe muito bem o que a necessidade foi capaz de criar em um mundo marcado pela seca, pela política de rapina e pelo absolutismo patriarcal. Em situações tão adversas, viver passou a ter um certo caráter laboratorial de lógicas aleatórias. Esses feitos, entretanto, só conseguiam aparecer com toda a sua magnificência na imaginação dos cordelistas. Para os autores de cordel, não há qualquer dificuldade em juntar o Lampião e a Madona num baile perfumado tocado por São Jorge em plena Lua.
A linguagem de “Eu Tu Eles” tem como maior mérito um resultado visível de sincronicidade. Elenco, fotografia, música, figurino, continuidade, roteiro, direção, produção, enfim, sente-se o talento em sonho, compromisso e movimento. Percebe-se que funcionou o cooperativismo largado da Conspiração Filmes. Certamente isso colaborou para o trabalho sair com cara tão própria. Tinha tudo para ser um belo documentário, a partir da matéria do repórter Moacir Maia no Fantástico; para ter virado uma carregada trama de rodriguianismo rural; um escrete cinema-novista ou partido para o histerismo carnal de Almodóvar. Mas a equipe de Andrucha conseguiu a proeza de conservar o ritmo lento dos personagens, sem perder a dinâmica dramática que revigora o filme quadro-a-quadro.
Pela intensidade do olhar, pelos trejeitos e pela consistência do enredo, parece até que a gente conhece cada uma daquelas pessoas representadas. No realismo excessivo do sertão, as falas são mesmo poucas e certeiras. O que está claro muitas vezes não carece ser dito para não atrapalhar. A lei do ciúme ronda, com suas doces vinganças, a casa de taipa perdida entre jogos de sombra e a luz alaranjada do ocaso, na vegetação cinza da caatinga, com chão de barro queimado, estradas poeirentas e o corte azul do céu. As cenas noturnas são marcadas pela luz amarela que tenta chegar ao terreiro.
A dureza cultural e ambiental cede espaço para o consentimento e para a tolerância. “Eu Tu Eles” caminha por esse fio de subversão e sutileza. Darlene não busca o macho ideal. A sabedoria do seu espírito revela-se na aptidão que ela tem de maximizar as coisas boas das suas relações. Não perde tempo com o que não presta. Com leveza e habilidade espontânea, consegue, diante das circunstâncias, o equilíbrio complementar na ligação com os seus companheiros, em situações de sofisticado senso de humor, construindo assim um lar no mínimo futurista. A competição velada entre os primos Osias (Lima Duarte) e Zezinho (Stênio Garcia) em nenhum momento abala o companheirismo dos dois. Ter preservado esses valores tão sedimentados na alma rústica das pessoas do campo, é outra façanha do filme.
Quase sempre barriguda e com as mãos nas ancas, durante a projeção Darlene tem quatro filhos aos sons e silêncio do sertão. Só não pariu menino do Osias, que é o marido com o qual casou de papel passado e direito a fotografia familiar. Ele é o dono da casa e do único rádio que passa o dia ligado no cancioneiro de Luiz Gonzaga. Talvez esse até pudesse ser um poder que se bastasse. Mas Osias reage à impotência dando um jeito de registrar toda a criançada em seu nome. Este tipo de atitude é bem próprio da mais profunda raiz brasileira.
É um filme de grandes papéis e notável acabamento conceitual e técnico, com bem resolvido trançado sentimental. Osias é preguiçoso e explora Darlene, mas é quem oferece segurança; Zezinho faz a comida e cuida dela com afetividade ingênua; e Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos) compensa o prazer que o cansaço dos outros não dá conta. Faz-se assim o combinado do homem da casa de taipa, o de dotes culinários e o que pega no pesado com ela na vida dura dos canaviais. “Eu Tu Eles” passa-nos essa história toda sem pressa por final feliz e sem qualquer inclinação para chegar a um final que não existe. É uma novela de felicidade sobrevivente no coração de uma mulher que está viva na realidade e na ficção.