Uma certa visão Johnson
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 19 de Setembro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na área central do brasão cearense a figura de uma carnaubeira divide com o sol e com a jangada as honras de representar nossas mais emblemáticas vocações naturais e culturais enquanto Estado da federação brasileira. O tronco retilíneo, cilíndrico e escamoso exibe ao topo uma esfera de leques cosmogônicos capaz de encantar os olhares mais desatentos. Conhecida como “árvore da vida”, por suas múltiplas utilidades, a carnaúba tem ainda o segredo da longevidade e da resistência a intempéries. Símbolo que extrapola as razões econômicas que, por muitas décadas, louvaram à sua existência. Da construção de moradias rústicas à produção de cavalinhos de pau para brincadeiras infantis, a cultura cearense deve muito aos carnaubais nativos e cultivados interior adentro.
É uma palmeira típica do Nordeste, região que há meio século chegou a exportar mais de cem mil toneladas de cera, como matéria-prima para a fabricação de uma grande variedade de produtos, tais como discos, graxa para sapatos, vernizes, lubrificantes, velas, lâmpadas incandescentes, papel carbono, sabonete, lápis de cera e batom. Os tempos mudaram, as bases sintéticas começaram a ser economicamente mais vantajosas do que as naturais e o desmatamento foi tomando conta das plantações de carnaúbas. Embora seja um bom isolante térmico para chips de computadores, a cera de carnaúba, que já foi o principal produto da nossa pauta de exportação, parece que recebeu o seu ultimato econômico.
Nos anos trinta, quando os Estados Unidos ainda não tinham sido salvos pela Segunda Guerra Mundial e amargavam uma grande depressão, o então diretor da S. C. Johnson, Herbert F. Johnson, resolveu ousar para reverter a queda de vendas dos produtos de polimento da companhia, montando uma expedição científica num hidroavião, com a finalidade de estudar a carnaúba no “ombro” da América do Sul, onde está o Ceará. A aventura resultou na ampliação dos horizontes corporativos e na consolidação dos negócios da empresa, hoje estendidos a uma centena de países, com variadas marcas líderes de mercado.
Em um livro intitulado “Expedição Carnaúba”, publicado em 1936 e reeditado este mês pelas Ceras Johnson, Herbert conta detalhadamente a viagem de Racine a Fortaleza, contextualizando bem as razões da sua decisão: “A indústria americana tem usado a matéria-prima em produtos manufaturados com pouca atenção para o suprimento futuro. Florestas foram derrubadas às pressas, minas despojadas de seus conteúdos, os tesouros da terra foram sugados para prover necessidades e luxos para uma vigorosa nação em crescimento”. Era preciso ter visão de longo prazo e coragem para correr riscos e ele soube ter ambas com maestria naquele momento.
Pela atuação de mais de seis décadas no Ceará pode-se constatar, em atitudes concretas, uma outra visão da organização da família Johnson, que é o cuidado na relação com a sociedade onde mantém seus negócios. Sam Johnson, atual presidente do grupo, disse há poucos dias, por ocasião da sua vinda a Fortaleza para receber o título de Cidadão Cearense, que onde eles instalam uma indústria a comunidade tem que melhorar. O caráter afetuoso resguardado com o Ceará, deve-se em parte ao símbolo que a expedição agregou à história da companhia. “Antes de falecer, meu pai me pediu para fazer algo que era um tanto fora do comum para um homem de uma cidade pequena de Wisconsin. Ele me pediu que gravasse uma carnaúba em seu túmulo”, revelou Sam há dois anos quando refez, acompanhado pelos filhos Curt e Fisk, a trajetória aventureira do pai.
Reforçada a importância do arquétipo da carnaúba na vida da S. C. Johnson, a presidência da empresa, que antes já mantinha uma escola em Fortaleza e havia doado uma área de carnaubal em Maranguape para uma reserva botânica que anda meio abandonada pelos poderes públicos, resolveu conceder, em parceria com a TNC (The Nature Conservancy) uma verba de três milhões de dólares para a elaboração de um projeto de conservação da biodiversidade e aquisição de duas reservas naturais no semi-árido cearense. Essa atitude motivou a criação de uma ONG chamada Associação Caatinga, cuja missão é “conservar as plantas, os animais e as comunidades naturais que representam a biodiversidade da caatinga”. Uma das quais, a reserva Serra das Almas, com 4.750 ha, na região de Crateús, já foi adquirida e se encontra em fase de definição do plano de manejo.
Embora mantendo apenas uma pequena fábrica processadora de cera de carnaúba, localizada em Maracanaú, a S. C Johnson elabora muitos dos seus produtos a partir de compostos de síntese química. A questão do encanto pela carnaúba e pela preservação da “biblioteca da terra” no Ceará é um exemplo a ser cobrado das outras tantas indústrias que vêm se instalar em nosso estado apenas por conta da mão-de-obra barata e dos incentivos fiscais, desvinculadas friamente de qualquer ação positiva no que diz respeito à valorização do meio ambiente e das comunidades onde implantam suas plantas industriais. Infelizmente poucos são os empreendedores têm uma certa visão Johnson de empresariar.