Quando faleceu, a poetisa estadunidense Emily Dickinson (1830 – 1886) deixou mais de 1.700 poemas escritos. Em vida só conseguiu publicar uma dezena deles. Passou seus dias praticamente trancada em casa, em uma auto-reclusão tão severa que, mesmo quando recebia alguém, limitava o contato à sua voz de tom irônico e pouco amigável.
No entanto, a obra que produziu como válvula de escape de um ser sensível e amargurado tornou-se referência da condição feminina e amorosa, em um mundo e um tempo de relações familiares e religiosas fortemente rígidas. Seus poemas, escritos à noite, enquanto a realidade dormia, tinham em comum a marca da ambiguidade.
Inspirado nessa dramática história, o cineasta britânico Terrence Davis resolveu levar para as telas essa incômoda experiência de melancolia ante a dor do isolamento e a sensação de fuga pelas metáforas. Fez Além das Palavras (A quiet passion, no original de 2016), um trabalho que exige esforço para ser assistido, por força da sua narrativa cerebral, embora seja um importante filme de palavras, de fala, de poesia.
A rejeição e o apego de Emily à moral social e religiosa sufocante de uma época de predominância do puritanismo e de guerra de secessão revelam um mundo triste, emocionalmente pouco envolvedor. O endurecimento do meio repercute na família afortunada da protagonista, implodindo o seu coração solitário e explodindo versos abafados pela dificuldade social da mulher de exprimir seus sentimentos e desejos.
A dureza e o sarcasmo que afloram naquele ambiente doentio estão presentes a todo tempo nos diálogos de elevado padrão de erudição solitária e de baixo nível de alteridade. É um filme enfadonho em suas duas horas de duração, exceto para quem estiver interessado em refletir sobre os conflitos existenciais de Emily Dickinson ou mesmo sobre os paradoxos desse fenômeno de sofrimento e criação poética tão próprio da natureza humana.
A paciência é compensada pela leitura que o espectador pode fazer do contexto do nascimento de uma obra poética. Algumas cenas são bem especiais, como o momento em que Emily, toda sem jeito, toma o sobrinho bebê nos braços e começa a recitar para ele um poema no qual sintetiza suas frustrações de se sentir feia e ter dificuldade de amar em um mundo de padrões machistas que nega: “Não sou Ninguém! Quem és? / És tu – Ninguém – também? / Há, pois, um par de nós? / Não fales! Não vão eles – contar!”.
Além das Palavras, em exibição no Cinema de Arte do Cinépolis-RioMar, é um drama biográfico que permite acesso livre ao que seria o pensamento das personagens, suas convicções e hesitações, em circunstâncias de opressão e torpor. Nesse contexto de contrição do afeto, é reconfortante ver os gestos e as falas de Vinnie, a irmã que faz o papel dos olhos e da voz que valoriza Emily, em uma demonstração de centralidade que consegue, de certo modo, proteger a poetisa em seus momentos de depressão.
Se o filme de Terrence Davis requer paciência e propósito específico para ser assistido, pode, contudo, provocar sensações, impressões e pensamentos de grande relevância. Mostra de perto a agonia de uma poetisa que tinha receio de não ser amada e escapava para dentro de si pela rota da poesia, embora permanecesse com a mente e o corpo presos a princípios morais patriarcais.