A afirmação de que o real está na perspectiva do impossível tem sido frequentemente utilizada por mim depois que publiquei o livro-cd Bulbrax – Sociomorfologia Cultural de Fortaleza (Armazém da Cultura). Nos oferecimentos dessa obra costumo ressaltar o apelo à busca da impossibilidade como uma maneira de escaparmos das armadilhas da intimidação causada pelas aparências hegemônicas.
Foi lendo o filósofo marroquino Alain Badiou que me dei conta das mais remotas reflexões que tive com relação à descoberta do que existe por trás das máscaras que se passam por realidade. Os primeiros impulsos sobre a “possibilidade do que não pode ser” aconteceram em mim na inquietação de adolescente do interior, motivados pela banda Secos & Molhados. Os rostos pintados de João Ricardo, Gerson Conrad e Ney Matogrosso me diziam que algo oculto estava a se expressar, e que isso poderia ser o real do real.
O som, as performances e as letras descoladas dos bloqueadores do real já me sinalizavam o que ao ler Alain Badiou passei a perceber como conflito dialético. Isso ocorreu literalmente com a canção “O doce e o amargo” (João Ricardo/Paulinho Mendonça), na qual se explicita, seminal e poeticamente, o jogo existente entre a aspiração hedonista do “beber o possível” e a vontade transformadora de “sugar o seio da impossibilidade”.
Essa música tem o que o pensador marroquino considera a chave do acesso ao real, que é a potência de uma dialética afirmativa: “O sol que veste o dia/O dia de vermelho/O homem de preguiça/O verde de poeira/Seca os rios/Os sonhos/Seca o corpo/A sede na indolência//Beber o suco de muitas frutas/O doce e o amargo/Indistintamente/Beber o possível/Sugar o seio da impossibilidade//Até que brote o sangue/Até que surja a alma/Dessa terra morta/Desse povo triste”.
Vivemos no Brasil um tempo de tristeza, com a sociedade refém da promiscuidade estabelecida no mundo dos poderes políticos, econômicos e de organizações sociais, que se impõe como o real. E tudo parece acontecer apenas sob a influência dos que querem retomar os padrões mais brutais de exploração dos trabalhadores e dos que traíram o voto transformador ao adotarem as práticas mais podres de corrupção, contra as quais foram eleitos.
O que se apresenta como possível, diante dessa tragédia brasileira, é uma espécie de falsa Escolha de Sofia, como se a população só tivesse a sádica opção do realismo para, como diz a canção dos Secos & Molhados, fazer surgir a alma dessa terra morta. Nosso drama não é igual ao da prisioneira polonesa que, no campo de concentração nazista, foi pressionada a decidir qual dos dois filhos deveria morrer, a fim de que ambos não fossem assassinados.
A complexidade da situação do país requer mais do que o possível. Alain Badiou diz que para alcançar o real é necessário romper com o que está estabelecido no senso comum como irrealizável. Para salvar a democracia, precisamos renunciar à ferocidade da ideia de que a troca de negações é o caminho para a afirmação. Mais do que isso, precisamos nos livrar do que ele chama de “humilde corrupção”, que é seguir com a máscara do real, onde vicejam os códigos e mensagens estimuladores do pensamento de que, definitivamente, tudo pode ser comprado ou vendido.