Era uma vez Iracema
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 28 de Novembro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Toda intervenção urbana é ideológica, mas há algumas que chegam a ser escatológicas. O vandalismo oficial que vem permitindo a mercantilização dos espaços públicos na Praia de Iracema beira a esse nível de consumação do tempo e da história. O bloqueio desse foco de efervescência cultural, através da descaracterização sistematizada, enfraquece o espírito do lugar e apaga os seus traços de identidade. Fica bem mais fácil ser dono de um bairro sem forças, de uma cidade de ninguém. É lamentável constatar que a maioria dos empreendimentos feitos no local obedece apenas a uma projeção de espertezas individuais que comprimem o bairro a se tornar uma zona propícia a todo tipo de aviltamento e improbidade.
Entregue à própria sorte, a Praia de Iracema foi deixando de ser uma das mais importantes referências culturais de Fortaleza para virar nada mais do que um apetitoso destino de negócios e improvisos descontextualizados. Muitos dos equipamentos e obras de infra-estrutura realizados no local parecem bastante interessantes quando observados isoladamente. A calçada por trás do Estoril, a ponte metálica, o Centro Dragão do Mar e o aterro que está em construção no trecho de praia da ex-avenida Aquidabã, são alguns desses exemplos que não levam em conta impactos culturais e ambientais. A ausência de planejamento integrado, de visão sistêmica e de respeito aos valores históricos e culturais condensados naquela área, confere a essas ações um ponto em comum, que é o esforço de criação de um agitado eixo de consumo para a cidade. E nada mais.
No começo esboçaram-se algumas reações localizadas mas prevaleceu a intransigência administrativa dos executivos públicos e o alheamento vergonhoso da sociedade. Os camelôs de alvarás passaram a fazer a festa liberando edificações irregulares quanto ao limite de andares e em relação ao uso e ocupação do solo. O conceito de “Iracema Beach” contaminou as pequenas ruas que timidamente ainda conservam nomes indígenas nas paredes. De jogo de boliche, casa de pagode, grifes de micaretas, pistas de inferninho e boates pornôs, a acampamento de bicho-grilo, instalou-se de tudo sobre a memória do lugar. Essa onda de inconveniências e artificialismos descaracterizou a praia e estimulou a ampliação da freqüência de pessoas pouco interessadas em noção de responsabilidade pública e valorização cultural. A corrida para ocupar os espaços ociosos é tão sem freios que não vai sobrar lugar para estacionamento de veículos nem para a circulação de coletivos especiais. Como a compreensão sobre código urbano de posturas e plano diretor está restrita a poucos privilegiados, o senso do caos faz com que cada qual cuide estritamente do seu ignóbil filão.
No entorno do Centro Dragão do Mar esse individualismo revela-se em atitudes facilmente identificáveis como a guerra das caixas de sons. É insuportável sentar em qualquer daqueles bares para usufruir de um recanto tão agradável de convivência. O volume da música é tão fora de propósito para o ambiente que prejudica até mesmo os shows apresentados no anfiteatro. O Dragão não deve ser encarado como um shopping cultural. Precisamos contribuir para que ele encontre a sua alma, que é também a alma da cearensidade. Não é uma tarefa fácil, mas será um erro ficarmos simplesmente exaltando o deslumbramento da sua estrutura de pedra e cal iluminada. Tenho dito por onde converso sobre esses assuntos, inclusive com a direção do Dragão, que nada é mais estranho para mim do que naquele centro de cultura não ter um espaço com vídeos, instalações e exposições que levem os visitantes a saberem quem foi mesmo o Dragão do Mar. A sabedoria cidadã do pescador Chico da Matilde precisa impregnar o conceito do centro que leva o seu nome.
Circular pela Praia de Iracema deveria nos dar automaticamente a sensação de estar recebendo uma aula sobre a história de Fortaleza, seus movimentos culturais, a saga dos migrantes e o enredo de um passado de gloriosas exportações de couro, algodão, mamona, oiticica e cera de carnaúba que os galpões guardam em silêncio. Quando criança costumava ver dezenas e dezenas de caminhões carregados de algodão passando nas empoeiradas estradas do sertão. Era bonito. Só quem viu sabe desse Ceará de fartura rural que não existe mais. Por isso, quando olho as pessoas transitando entre aqueles armazéns como se fossem apenas velhas edificações sem nexo, sinto um imenso vazio de honestidade coletiva. É muito duro viver em uma cidade órfã de memória, que não consegue despertar curiosidades sensoriais.
A apreciação de um lugar depende significativamente da generosidade dos seus espaços e da sua cultura. Para que haja urbanidade é necessário o estabelecimento de uma relação afetiva com o meio. O que, por sua vez, só é possível com a difusão do entendimento do que é espaço público. Uma paisagem é pública, o que se vê é público. Pouco atentamos para isso. Quando nos omitimos diante da transfiguração insensata de um bairro tão especial para Fortaleza, como a Praia de Iracema, é um mau sinal de que dentro de nós também estamos deixando sumir o desejo de viver em uma cidade melhor. O mar continua comparecendo com toda a sua grandeza e beleza pacientes, mas quem deve saber da necessidade do horizonte somos nós.