O ócio reparador
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Segunda-feira, 16 de Janeiro de 2001 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Das qualidades comportamentais que mais admiro, na interface da cearensidade com a cultura brasileira, a capacidade de reversão do tempo disponível em atividades criativas aparece de longe em primeiro lugar. Somos um povo que só consegue repousar quando está em movimento. É vitalizante e irrepreensível na superação de adversidades. Sinto-me privilegiado por ser assim, por fazer parte dessa gente inquieta. Mas existe um valor ancestral, deixado de lado pela dinâmica contemporânea, que faz falta como instrumento da nossa evolução. É coisa de índio, de jangadeiro, de vaqueiro, de migrante, de gente nômade acostumada a ter tempo para largar a vista ao céu, para contemplar a linha do sem-fim e para se deixar afetar pela influência apaixonante da lua.
Tenho a sensação de que a prática desse ócio reparador nos daria um grande e seguro impulso no relacionamento com os modismos importados como excelência da modernidade. Seria uma maneira de desfragmentarmos a mente dos vácuos e bolhas estressantes embalados pelos avanços tecnológicos. O equilíbrio da vida no Século XXI passa pelo direito de vagar, pelo deleite e pelos instantes de desobrigação que formos capazes de conquistar. A beleza e o poder da tecnologia móvel, da nanotecnologia, da poeira digital, dos computadores orgânicos, da biotecnologia e até mesmo do tesão virtual, somente valerão a pena se puderem proporcionar prazer de viver à humanidade.
A unidade de medida de tudo isso é o ser humano e temos tido muito pouco tempo para pensar sobre o significado dessa responsabilidade. Vamos utilizando duvidosos mas pouco questionados verificadores de vantagens, com resultados tecnológicos eficientes mas de reduzida eficácia. O chamado tempo livre seria uma conseqüência natural da automação, da mesma forma que a descoberta da eletricidade poderia ter aposentado a tração muscular e os computadores deveriam estar dando folga à inteligência para podermos cuidar mais da consciência. O ócio reparador é uma válvula de escape em avançado processo de oxidação pelo impedimento do exercício da solidão desejada.
Toda a parafernália necessária para oferecer as pessoas mais tempo para si mesmas já está produzida. Estamos distantes é de ter compreensão da importância do bem-estar coletivo. O tempo dos desocupados por exclusão do mercado não pode ser considerado livre. É tão estressante quanto as horas dos que são submetidos às jornadas desumanas de trabalho. O professor Milton Santos, geógrafo e destacado pensador brasileiro, tem ressaltado em seus textos e entrevistas que o aumento do desemprego é a maior prova de que a técnica já criou condições objetivas para a liberação das pessoas à prática do lazer. Sua argumentação aponta para o fato de precisarmos apenas mudar as nossas orientações políticas para conceitos que nos libertem da determinação das grandes corporações internacionais, cujo compromisso evidente não é cuidar do ser humano, mas dos seus próprios lucros.
Essa realidade gera imprecisas representações no momento em que precisamos nos posicionar diante das oportunidades disponibilizadas pelo mundo. Uma pesquisa do instituo norte-americano Roper Starch Worldwide, realizada no ano passado em 30 países e publicada no Brasil pela Folha de São Paulo (7/6/2000), identificou que a maioria dos entrevistados prefere mais dinheiro a tempo livre. O que foi divulgado como novidade é, na verdade, o óbvio mascarado. Na cabeça de muita gente, a expressão “tempo livre” confunde-se com uma série de situações repugnantes, como a sensação de inutilidade e o desperdício de mulheres e homens, causados pela ausência de trabalho. Dinheiro, não. Dinheiro, como me disse certa vez o cartunista Mino, não traz a felicidade mas financia. Neste caso, o uso do tempo aparece como algo supérfluo diante da possibilidade de poder comprá-lo. No imaginário popular, ter dinheiro pode significar simplesmente a condição de poder pagar o tempo para o lazer. Mas os realizadores desse tipo de pesquisa borboleteiam pelos quatro cantos do mundo que a ausência de tempo é menos desejada do que a falta de dinheiro.
Com o grau de envolvimento que o ritmo do cotidiano vem exigindo de cada um de nós na luta pela sobrevivência, desconfio que precisamos de um tempo para sentir a atração do campo gravitacional colando-nos ao chão, para sentir o fascínio do nosso magnetismo mestiço, a harmonia dinâmica do cosmo, o prazer dos sentidos… a serenidade do nada. Desfragmentar o nosso disco rígido como ensinamos aos computadores para o alívio das suas áreas de armazenamento e trânsito de informações. Estados de descanso que não caibam o positivismo reverberante do filósofo francês Auguste Comte (1798 – 1857), nem fique limitado ao “ócio criativo” que vem sendo pregado pelo sociólogo italiano Domenico De Masi. Esse ócio funcional e racionalizador do tempo para a criatividade, é bem lembrado, tem tudo a ver conosco, mas continua sendo um modelo burocrático a nos fazer pressão.
A experiência do ócio reparador está para a vida diária como o sono está para o inconsciente. Recorrer à prática desse valor dos nossos antepassados, que não se confunde com tempo livre de trabalho, lazer, tarefas domésticas, dormir, parar para as refeições, locomoção, convívio familiar, televisão, internet ou malhação, pode ser um jeito de criarmos condições de convivência com a loucura competitiva e de restabelecermos a nossa coragem para seguirmos a caminhada de fortalecimento da diversidade cultural e do respeito à existência. Comemora-se o aumento da expectativa de longevidade das pessoas, isolando duração de qualidade de vida, como peça do marketing baseado no medo da morte. Isso é humanamente arcaico. Futurista é a parte da Carta Sobre a Felicidade, de Epicuro, que na Grécia Antiga negava o temor a morte simplesmente porque não vislumbrava nenhuma vantagem em se viver eternamente.