Relicário da brasilidade
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 11 de Novembro de 2001 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No dia em que pensei bastante sobre esse assunto, eu vinha de Limoeiro do Norte, para onde um grupo de artistas e estudantes universitários tinha me convidado a falar sobre cultura e globalização. Refletira com eles acerca das mudanças ocorridas nos nossos pontos de referência, na nossa forma de ser, viver e de participar da permanente construção do mundo. Das duas horas de conversa no auditório do Centec muitas percepções foram expandidas, mas a que resultou na necessidade de nos vermos com os próprios olhos tomou a estrada comigo sem pedir carona.
Por que você faz arte? Havia feito esta pergunta a cada um dos participantes de um grupo que reclamava da falta de apoio oficial para as suas apresentações. A provocação não teve a intenção de julgar a razão da queixa nem de minimizar a importância do debate sobre políticas públicas e marketing cultural. Queria ter uma idéia do quanto a exigência da manifestação artística naquelas pessoas estava diretamente dependente de patrocínio político e financeiro. Entreolhamo-nos como estranhos até nos encontrarmos no ladrilho das nossas próprias lembranças. As lembranças das pulsões estéticas que nos identificam no mundo e das circunstâncias matriciais da nossa história.
Abrimos uma pontinha do relicário da brasilidade, inspirados na cumplicidade de tantos porquês. Na estrada, segui pensando nas fragilidades e nos pontos fortes do nosso aprendizado civilizatório. Muitos fantasmas vagueiam por nossas mentes culpando-nos por termos sido colonizados pelos portugueses. A assombração tem até palavra de ordem: “Isto é Brasil”. Toda vez que o sentimento de impotência nos apavora, recorremos a ela no cárcere da nossa auto-estima política. Vivemos em uma país fundado por improvisos dramáticos, mas não podemos esquecer que herdamos de tudo isso um invejável patrimônio social, cultural e econômico, constituído por um mercado comum, com língua comum e uma sociedade futurista em sua expressiva miscigenação.
Na tarde silenciosa, dirigindo no sentido do pôr-do-sol, comecei a imaginar como seríamos, caso holandeses e franceses tivessem expulsado os portugueses no balanço das invasões. Pensando bem, não seríamos, sequer existiríamos. Mas se a outra gente que poderia estar aqui tivesse o destino fragmentário e a instabilidade que passaram a ter os habitantes dos territórios conquistados pela Holanda e França, seria lamentável. A bem da verdade não existe bom colonizador. Todos são perversos. Dão as regras de conveniência e são os próprios juizes. Foi assim no passado e continua sendo nos dias de hoje.
O labirinto da dependência é cheio de anúncios luminosos indicando saídas que nos embrenham cada vez mais. Estamos sempre subindo pela escada rolante que desce e isso não vai parar enquanto não deixarmos de pensar como colonizados. A base mais sólida da nossa economia é a nossa unidade lingüística e a nossa diversidade cultural. Pelo tamanho e potencial do nosso mercado, jamais poderíamos aceitar, por exemplo, o consumo de computadores sem a devida tradução dos seus programas para o idioma português. Mas, a consciência de rodapé da nossa elite absorvente não atenta para essas barbaridades sutis e pagamos muito caro por isso.
Deixar de pensar como colonizado é uma questão de largar as tentações da esperteza para viver a simplicidade de ser desperto. O que nos faz bem, nada aquém, nada além, revela-se a todo instante, mas precisamos estar preparados para perceber os sinais de translação em volta do relicário da brasilidade. Outro dia, a badalada modelo Suyane Moreira, cafuza do Cariri cearense, declarou aos quatro ventos que tinha vergonha da própria cor e das feições do seu corpo negro e índio. Foi preciso que as passarelas valorizassem esses atributos étnicos para ela perder o medo do espelho.
Com que olhos nos vemos? Esta pergunta poderia muito bem seguir conosco em constante exercício de silepse cultural, no qual a concordância sobre o que queremos ser passaria a ser balizada conforme o que somos e não segundo as regras do que dizem que poderemos ser. Até sentirmo-nos mestiço por inteiro, como prescreve a música “Mestiçagem” (Antônio Nóbrega / Wilson Freire) e sermos mais e mais mestiços verdadeiros, “cada vez mais misturados, cada vez mais brasileiros”. Essa consciência, somada à nossa vocação para a economia solidária e para o jeito de tocar o próprio negócio, é meio caminho andado para a autogestão comunitária, que é a principal força política e cultural de uma sociedade.