A dimensão da sutileza
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 31 de Março de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Bento encontrou uma amiga que há tempos não via. Ela esboçou um sorriso nervoso e o cumprimentou com um estranho abraço, como se tivesse prestes a pedir de perdão por alguma atitude não revelada. Ele sentiu o calafrio daquela reticência nunca antes percebida em tantos anos de convivência e afetividade mútua. Parecia não haver espaço para as palavras naquele gesto de tensão das tendências criadoras e destruidoras da amizade entre as pessoas. As palavras ressoam com mais intensidade quando os espíritos estão quietos. Mas ela não vislumbrou outra saída para o peso do silêncio e desabafou:
– Vendi minha alma ao Fausto – disse soltando lentamente os braços ao longo do corpo.
– Mas o Fausto vendeu a alma dele ao diabo – retrucou Bento.
O diálogo entre amigos sempre tem certas vicissitudes que só o acesso à intimidade de cada um é capaz de revelar. A tentação de Mefistófeles ao personagem Fausto, da peça de Goethe (1749 – 1832), tinha sido no passado tema de longas conversas entre os dois. A metáfora do demônio intelectual, originalmente concebido pela imaginação popular germânica, era, portanto, um elemento de abertura simbólica àquela conversa circunstancial. O que significaria a expressão “Vendi a alma ao Fausto”? Até onde Bento sabia, a figura do Fausto representava a fraqueza humana submetida a um pacto de sangue com o diabo, em troca de poderes mágicos de prosperidade.
Calados e em passos aparentemente descontraídos dirigiram-se a um ponto aconchegante da beira mar, onde costumavam divagar sobre o sentido da vida e a matemática imperfeita do caos. O som das ondas, quebrando na praia, pedia sintetizadores em performance contemplativa. Bento iniciou a conversa com a vista mergulhada na estampa mutante formada pela espuma na areia. Queria encontrar uma maneira de tocar na importância da reconciliação da arte de viver com o cotidiano. Queria achar um jeito de levantar a diferença que existe entre o que se faz, como se faz e por quê se faz determinadas coisas na lida entre a dificuldade e o desejo.
– No espetáculo da vida, a grande emoção é poder ser ator e espectador. Sem esse exercício, tornamo-nos cúmplices da nossa própria negação. As duas dimensões da estética em domicílio que recebemos nas telas de tevê e através dos computadores reduzem o mundo a dois planos. Cair no jogo da largura e da altura é um retrocesso evolutivo. A profundidade é essencial para a percepção da sutileza, formada no ponto de equilíbrio do tempo como quarta dimensão – Tentou argumentar em tom existencial, mas foi logo interrompido.
– Já conversamos bastante sobre tudo isso. Foi muito bom, mas o tempo nunca vai me esperar e eu acho uma injustiça perder a oportunidade de realizar o meu sonho, sabendo que tenho talento e disposição para chegar lá – sussurrou, enquanto Bento massageava a sua nuca com as pontas dos dedos. Ele insistiu na construção da dúvida:
– Chegar lá aonde, minha amiga? Não temos o direito de matar a interrogação. A exposição bidimensional do conhecimento vem formando ignorantes afogados em um mar de dados e informações, sem bóias salva-vidas, sem colete. A humanidade criou as máquinas para programá-las em favor do seu bem-estar. Não é nem um pouco razoável que sejamos programados por elas em uma solitária prisão virtual.
As palavras de Bento não conseguiam romper a barreira do compromisso assumido por sua amiga com o atravessador do diabo. Tentou apelar para tudo o que o ser humano inventou de bom na tentativa vital de administração do processo evolutivo. Falou de tolerância, paciência, generosidade, ética, respeito, cooperação, consentimento, cumplicidade, perdão, solidariedade, flexibilidade e confiança.
– Já fomos capazes de criar todos esses e muitos outros mecanismos de convivência para chegarmos até aqui. A vida é um processo e estamos sempre no meio do caminho. A descoberta de Deus, por exemplo, deu poderes ilimitados à esperança. O diabo, o inferno e o pavor ao sobrenatural são recursos da descrença. Fausto pensava em ser genial e onipresente, por isso caiu na armadilha da própria astúcia ao delimitar um prazo para entregar a alma no inferno. – exclamou Bento levantando-se em direção ao mar.
A amiga de Bento não falou nada, mas o acompanhou. Com as mãos nos bolsos traseiros da calça surrada abriu o peito para sentir a brisa. Respirou fundo. Ambos tiraram os sapatos e pisaram na areia molhada. Saíram caminhando e esse encontro não teve qualquer aceno de despedida. Bento ficou sem saber avaliar exatamente o que aconteceu. Ele acredita que o ponto de equilíbrio da consciência está no respeito ao desejo, passando pela interseção da expressão da inteligência com a espiritualidade. Contou-me essa história e fugiu de repente da minha imaginação.