Em dinheiro já se pega muito pouco. As moedas eletrônicas e as divisas digitais não provocam mais qualquer perplexidade. O padrão tátil de posse que as cédulas sugeriam no passado há muito perdeu o encanto, embora, de certa forma, esteja preservado nos leques multicores dos cartões de crédito. No âmbito pessoal, ainda experimentam-se muitas dúvidas no controle de saldos e aplicações bancárias e, no campo coletivo, vive-se o pânico dos ataques especulativos que animam os fantasmas do sistema financeiro e orientam o humor das nações chamadas de emergentes.
Possuir, no senso comum de ter a posse, é um verbo que tende a se inclinar para a variante do seu sentido de desfrutar, independente do caráter de propriedade em si. A crescente onda de ampliação do setor de serviços no mundo tem empurrado as pessoas para esse entendimento. Tendência que ganha força com a ampliação da expectativa do tempo de vida da população mundial. Para que vingue o decantado rejuvenescimento dos idosos é preciso que a probabilidade de vida mais longa signifique viver com qualidade, senão é expansão de sofrimento. A ascensão do lazer e a busca pelo tempo de convívio perdido são traços mestres no desenho em fase de configuração.
Ainda não se trata de um novo modelo social, mas é evidente a disposição de muita gente de arriscar a valorização do viver. A ambição flui em vendavais contraditórios. Enquanto as corporações internacionais exercem pressão para que as pessoas larguem a vida e se juntem à competição sem rédeas do mercado em vastos sorrisos de quem está sendo filmado a toda hora e lugar, a natureza humana esboça sua reação reordenando quereres.
Conscientes ou não, iniciamos pequenas rupturas. Os chamados “dias úteis” perdem o monopólio do sentido de utilidade que secularmente nos acompanha. O “tempo livre” já não é tão inútil e reservado simplesmente para recarregar as baterias. As “horas vagas” passam a ter substância social e cultural. Muda-se a escala do olhar. Dispostas a usufruir legitimamente das benesses dos “dias inúteis”, muitas pessoas ousam até mesmo ganhar menos para, assim, ter mais conforto profissional e social.
Houve uma época, não tão distante, que era comum o esforço hercúleo de parte da classe média para comprar a sedutora casa de praia ou a casa da serra. De preferência as duas. Era sinal de status. Pouco interessava se aqueles símbolos de diferenciação social exigiam cuidados acima da capacidade do proprietário de mantê-la. Boa parte das pessoas que fizeram isso, por puro charme de inclusão, viveu o amargo desconforto da limitação. Por um lado era caro manter tal equipamento de veraneio e, por outro, havia uma indesejável função de âncora nesses lugares. Ou seja: essas pessoas acabavam meio que obrigadas a “usufruir” daquelas posses, restringindo a liberdade de conhecer novos lugares, cuja oferta de hospedagem e lazer tornou-se cada vez mais variada e acessível.
Mas não é tão simples reconhecer a evolução da oferta de serviços como um tipo de domínio nos parâmetros da contemporaneidade. O embaraço da decisão entre possuir e acessar está no dilema da opção entre o egoísmo e o holismo. A presunção do exclusivismo patrimonial perde, neste raciocínio, espaço para visões da complementaridade feita de diferenças, ainda que não altere necessariamente as relações de poder.
Na nossa navegação errática em busca da felicidade levam-se muitos sustos na tentativa de passar no teste da realidade. Enxergar longe é um exercício trabalhoso para quem vive o comodismo de pupila dilatada da certeza. No universo das religiões, por exemplo, a saúde do espírito passa pela oportunidade ecumênica de usufruto dos ensinamentos que cada uma delas nos oferta, sem termos de assumir quaisquer posses divinais. Mas, nesses casos, o vício do ter ainda se sobrepõe ao acessar, dificultando a comunhão da paz.
Flexibilizar a ambição é um grande negócio hoje em dia. Pensando bem, acessar é melhor do que ter. Tem sido comum o aperto de cinto de muitas famílias na intenção de acumular riqueza, de fazer poupança programada, planos de benefícios e fundos de aposentadoria, sacrificando momentos de carinho e afetividade na construção da confiança, que é a mais importante das previdências privadas. Compromisso demais para garantir o futuro compromete o presente. Não dá para distinguir o que terá realmente conseqüência em nossas vidas. Fazer provisões faz parte das expectativas humanas, mas investir para ter acesso ao que se gosta de fazer é o melhor caminho para a estabilidade e para o enfrentamento do futuro como ele for.