Bia e o condão de luz
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 12
Domingo, 21 de Julho de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Toda vez que Bia Bedran vem ao Ceará sinto novas frestas se abrindo para uma aragem mais salutar do nosso universo infantil. Seus cantos e contos transmitem elementos estimuladores da elevação do espírito. Estou escrevendo este texto no friozinho bom de Guaramiranga, no final da manhã da quinta-feira, dia 18, e ontem mesmo presenciei o ensaio do coral infantil Caixinha de Vozes que cantava uma das adaptações de contação-musical feitas por Bia e gravadas por ela inicialmente em fita k-7 e depois remasterizadas para CD. Curiosamente trouxemos na mala de férias das crianças o seu mais novo disco, que é uma espécie de número dois de Bia Canta e Conta.
Por conta do show “O Melhor de Bia” neste sábado, dia 20, na Praça Murilo Borges (em pleno centro da cidade) por ocasião da comemoração do cinqüentenário do Banco do Nordeste, descemos a serra antes do tempo previsto. E olhe que os meninos não param de falar nas maravilhas dos banhos e peripécias fantasiosas no “Riacho das Águas Claras” (Monteiro Lobato explica). Mas Bia Bedran, estando por estas plagas, tem autoridade construída para evocar a qualquer momento as crianças, pais e mães que a admiram. Suas cantigas, contos e representações cênicas estão impregnados por atraentes sabores de infância, sem a contaminação aética dos corantes, acidulantes e conservantes que normalmente pululam nas prateleiras da indústria do entretenimento e da educação.
A opção para ver Bia Bedran é a opção por quem respeita a infância, fazendo arte com escrúpulos por anos a fio. Artista pioneira na crença continuada de que o mundo infantil precisa exercitar ampliações imaginativas em favor do equilíbrio e da inventividade humana, ela entrelaça sua obra com rigor conceitua. Bia destaca-se pela capacidade de provocar emoções prazerosas e de instigar pensamentos sonhadores. É o exemplo de estrela com luz própria, digna de aplausos verdadeiros. Ela tem o dom do brilho natural de quem ousa se manter honrando a consciência.
Na linha evolutiva da música para crianças no Brasil, derivada das tradições populares, ela tem ainda o mérito de – a partir de Niterói – ter dado passos significativos na construção de um cenário para a MPB infantil, hoje animado por outros destacados atores como o grupo paulistano Palavra Cantada. Tudo isso sem limitar a arte aos apelos mercadológicos cotidianos. Apenas acendendo a luz dos outros mundos que estão dentro de cada um de nós. Bia Bedran trabalha com a criança que não morre, a que passa de geração a geração querendo crescer, crescendo e começando tudo novamente sempre que deseja reinventar a vida.
Bia desperta a paixão por fábulas, lendas, contos e pela música. Desperta o prazer da participação, da interação, com envolvimento. Com conteúdo as meninas e os meninos esperam até o fim. O gosto pela música, pela leitura, pela pintura, enfim, pela arte, nasce mais solto quando nasce no clima de brincadeira. A musicista brasileira Beatriz Ilari, tem comprovado em suas pesquisas que desde bebê o ser humano pode assimilar músicas complexas e de guardá-las na memória. As crianças não são tão mal equipadas como muitos fazem crer. O interesse pelas expressões artísticas é um aprendizado social e cultural. As preferências dependem em muito da educação e dos acessos que cada um tem.
Sem imaginação e sem conteúdo, prevalece o instinto e a lei da ignorância. Uma criança que tem como clímax de diversão o bloco infantil da micareta do Fortal não passa de vitima de pedofilia cultural. No dia 5 de julho passado, uma matéria no caderno de Economia deste O Povo anunciava uma novidade para que os pais oferecessem “mais que diversão e passeios” aos filhos nestas férias: a criação de um curso de etiqueta e convívio social para crianças de 7 a 10 anos, no qual são passadas “normas de comportamento, ética e cidadania para a humanização dos relacionamentos”. É a prova de que estamos mesmo sem medidas nessa enrascada pré-púbere à mercê da cleptomania do entretenimento. Já, já chegam as ninfetas russas Lena Katina e Julia Volkova, que estão no pódio do pop internacional, com hits eróticos sacudindo envelhecidas peruas e seus salamaleques precoces.
Dizem que a pesca seletiva dos peixes graúdos estimula a inanição nas futuras gerações. Do mesmo modo, se aniquilamos com a inocência, não teremos infância no futuro. Uma pesquisa do Ibope Telereport PNT identificou que o programa Big Brother é o mais visto entre crianças de 4 a 11 anos. O equivalente a 22,4% da audiência total. A questão é mais do que de ética, estética, de linguagem, é de acomodação cultural e política de uma sociedade de senso público manietado por interesses privados. Quando penso nessas coisas escabrosas, penso no tanto que precisamos multiplicar trabalhos como o da Bia Bedran e o seu adorável condão de luz.