O Estado e a Cultura
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10
Domingo, 10 de Novembro de 2002 – Fortaleza, Ce
É preciso espalhar o Brasil pelo Brasil para que o Brasil conheça o Brasil. Tem muito Brasil nessa afirmação, eu sei, mas muitas vezes é necessário apelar para a caricatura como forma de chamar a atenção aos traços mais salientes do nosso rosto multicultural. O conjunto de poderes constitucionais da nação não pode mais ficar alheio ao que temos de mais essencial no país que são os brasileiros e a sua cultura. Destituídos de visão estratégica os órgãos da administração direta misturaram papeis e acabaram reforçando a dispersão no tratamento das manifestações artístico-culturais.
Há uma expectativa de que nos novos tempos a sociedade possa contar com o Estado na condição de animador das expressões criativas forjadas em honestos sentimentos. O sistema de produção cultural necessita de atenção e intervenção reguladora das entidades públicas a fim de que a cultura seja reconhecida como um direito elementar de cidadania. Deixar que a indústria cultural permaneça deitando e rolando na agenda brasileira com a sua força indutora do consumismo é uma lástima. Principalmente quando ela se beneficia de verbas públicas para contaminar o sistema educacional.
Mesmo os trabalhos com valor artístico, mas que apresentam comprovado valor de mercado, não precisam ser patrocinados pela esfera pública. Senão a sociedade paga duas vezes pelo mesmo produto ou serviço. O Estado pode também, e isso é indispensável até, influir na estrutura de difusão e de distribuição de bens culturais para fazer chegar às pessoas as obras que de outra forma elas não teriam acesso.
As leis de incentivo à cultura viraram um grande balcão de espertezas. O Ministério da Cultura e as secretarias estaduais de cultura foram, via de regra, omissos no atacado e burocráticos no varejo. Os bancos mais do que beneficiados com recursos de “salvação” do sistema financeiro, receberam de mão beijada o poder de controlar o que é ou não cultura no país. Os nossos impostos passaram a servir banquetes para obras e artistas consagrados e a construir imagem social de co-responsabilidade, principalmente para as instituições bancárias. Por isso, tem-se a expectativa de que essas leis sejam reavaliadas e adaptadas à nova esperança brasileira. Não há como mudar o Brasil sem um compromisso determinado de alteração dos mecanismos de incentivo à cultura.
Sempre imaginei que os critérios de participação do Estado na cultura deveriam seguir a fórmula desenvolvida por Monteiro Lobato no Sítio do Pica-pau Amarelo. O mundo todo coube dentro da obra infantil do gênio de Taubaté. Da mitologia grega aos seres fantásticos nacionais. Mas tinha um porém: ao chegar no Sítio, o que quer que fosse passava por uma espécie de prisma definidor das nossas cores, do nosso olhar e do nosso sentido de viver. É desenvolvendo a percepção dos próprios valores culturais que uma gente se sente apta a evoluir.
Na verdade, com a criação das leis de incentivo à cultura, os governos estaduais descomprometidos sentiram-se confortáveis em reduzir o orçamento para as secretarias de cultura, largando-as ao jogo de empurra das negociações. Os secretários de cultura passaram paradoxalmente a serem concorrentes dos produtores culturais na captação de recursos para projetos.
Quando a cultura é tratada estrategicamente os agentes oficiais do meio cultural podem contar com orientações claras de procedimentos e fica mais difícil de vacilar. Da mesma forma, o patrimônio material e imaterial que não interessa ao mercado não fica a mingua, dependendo da boa vontade de quem quer que seja. Com a presença mais incisiva do Estado na cultura é possível reduzir inclusive as desigualdades regionais de auto-estima. O financiamento da cultura deve sair do estigma de pedinte para o Brasil poder mudar.
A atenção dos poderes públicos para a presença vigorosa da cultura reduz a pressão existencial e contribui para que a violência recolha-se ao espaço da inutilidade. O Estado tem o dever de garantir espaços de lazer e condições de reflexão à população. Tem ainda que cumprir o papel de difusor de tudo o que reforça os valores da brasilidade, como efeito pedagógico, iluminador, de auto-referência e, conseqüentemente, mercadológico. A associação da cultura ao turismo torna-se mais e mais indispensável, embora requerendo cuidados especiais para não inibir a pluralidade inventiva nem deslizar para o abismo da homogeneização da produção, agredindo e reduzindo o esplendor dos laços comunitários. O Estado como indutor deve contribuir para o entrelaçamento das redes regionais, marcando presença inconfundível na cadeia sócio-econômica da cultura.