Por dentro de casa
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10
Domingo, 08 de Dezembro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Toda casa, por mais modesta ou sofisticada que seja, precisa ser vista, pensada e sentida como uma obra de arte que se vive dentro dela. Puxada pela motivação evocativa dos antiquários, pelos fatores determinantes das tendências contemporâneas ou pelas simples expressões estéticas da casualidade, o que importa é o que ela significa em termos de bem-estar cotidiano. Particularmente, gosto de morar no tempo presente, sem dispensar o esforço de participar dos cuidados e dos detalhes que dignificam a formação permanente do canto de morar. Esse fundamento sempre me olhou com cara de quem quer saber se absorvi na prática o tanto que aprecio das moradias construídas como se fossem estojos de seres, porta-jóias de histórias comuns e baús de tesouros intangíveis.
Percebo que muitas das residências de hoje valorizam mais a imponência da segurança do que os traços sutis da convivência para a sociabilidade. De tão perfeitas em seus gabaritos, parecem desenhadas para ninguém morar. Não deixam muita margem para a revelação dos arabescos da alma. A casa é o templo-matriz da vida em sociedade. Mesmo aquelas engradadas e superprotegidas por modernos equipamentos de inteligência eletrônica podem escapar das metáforas obsedantes do mito da insegurança se quem as habita procura compreender o valor complementar da coletividade.
A casa tem vida. É orgânica. Por isso se transforma, se ajeita e se adapta para agradar e ser eterna. Modifica-se por todo o tempo para satisfazer a quem, cuidando dela, cuida de si e dos que nela vivem. Uma casa é o exoesqueleto sociável de qualquer tipo de família. É a síntese do que pensamos e de como nos vemos no mundo. No México, a casa de Frida Kahlo ainda guarda nas paredes as cores fortes que marcaram a vida da pintora. Guarda também toda uma variedade de expressões artísticas da cultura popular que acalantavam o seu âmago ardente. No Chile, a casa de Pablo Neruda preserva toda sorte de lembranças que o poeta-diplomata recolheu pelo mundo por onde andou. Na sala onde reunia os amigos, por trás da mesa retangular, uma pequena porta reservada ainda mantém o clima de mistério que ele nutria para os instantes da sua chegada.
A casa reflete o estilo, a personalidade e a cultura da gente. Sinto a força tropológica que a arte utilitária da nossa herança nativa reverbera lá em casa. Sinto também a vontade de abrir o máximo de espaço de circulação para o vento, para o olhar e para as crianças ficarem à vontade no experimento das aventuras. Quando o nosso primeiro filho nasceu, o Valber Benevides pintou um lindo painel com personagens que consideramos significativos no universo infantil. Agora já temos dois menininhos e eles dividem o mesmo quarto entre uns painéis bordados pela Nice Firmeza e pelas telas de duas casinhas coloridas, pintadas pelo Edmar Gonçalves, nas quais estão realçados os nomes e as datas de nascimento de cada um dos nossos filhos, como se fosse o tradicional relevo no reboco das fachadas das casas populares.
Tenho a sensação de que um lugar é para sempre quando consegue ser flexível e explorado em sua mais ampla linguagem sensorial. O lar doce lar onde nasci e passei a minha infância e parte da adolescência tinha a simplicidade das paredes coloridas, com os rodapés pintados em cores diferentes e o piso de cimento queimado, bem lisinho, bem friinho. As paredes eram ornamentadas com decoração funcional da vida interiorana. A casa onde moro é bem diferente, mas também é colorida, com piso bem friinho de pedra polida. Pelo apartamento desfilam livremente quadros que foram fixados por nós, um a um, ao serem solicitados pelo olhar pidão das paredes.
Pouca mobília e o máximo de espaço possível para circulação. Essa é a casa que considero ideal. Não importa se o imóvel é grande ou pequeno, próprio ou alugado, o fundamental é que a sua essência seja agradavelmente autêntica. Lá em casa, boa parte da sala, incluindo a varanda, virou a brinquedoteca da molecada, com prateleiras de brinquedos, quadros do DIM e um pôster do notável filme Kiriku e a Feiticeira (Michel Ocelot). Acredito na harmonia da casa como força de influência para a melhoria da vida comunitária. É de casa que partimos para o mundo.
Mas a casa é também um lugar para a gente voltar, descansar, se sentir bem, inventar e reinventar o amor, a felicidade, a vida, a lida, o mundo, o tempo. Rachel de Queiroz diz que para chegarmos em casa abrimos a porta da rua. E não há nada mais agradável do que sentir que chegamos a um lugar onde podemos estar simultaneamente mais próximo de nós mesmos e da imensidão da paz.