Epidemia da violência
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 02 de Março de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nas ruas as mensagens publicitárias das empresas de proteção privada nos alertam desde janeiro que o ano “vai ser a maior limpeza”, que “em breve você receberá uma visita” e que “a cada 20 segundos um brasileiro é assaltado”. Ao chegarmos em casa a tevê desanda seu festival de estímulos reais e imaginários em relação ao quanto estamos perdidos nessa Torre de Babel da insegurança, no sentido social e multilingüístico da metáfora. No diário da sobrevivência às pressões dos signos e dos fatos, muitos guardam fôlego apenas para denotar absortas interjeições e suspiros de debilidade: “ainda não foi a minha vez”. Cercados por insinuações suspeitas, ameaças veladas e soturnas rememorações, temos encurtado o nosso modo de percepção dando, na maioria das vezes, a dimensão do todo ao que não passa de fragmento da realidade.
Nesse ambiente propício à contaminação das nossas reservas de autoconfiança, a violência se alastra como uma doença infecciosa no comportamento coletivo. O professor Jesús Martin-Barbero, respeitado intelectual espanhol de pensamento latinoamericano, revelou um dia desses numa entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, que parte significativa da sensação de insegurança que temos se deve ao carregado clima de tensão a que somos expostos pelos meios de comunicação de massa. A prevalência do medo na vida brasileira se amplia nas práticas simbólicas e na ritualização da noção de perigo no cotidiano. Os parasitas da indústria de armas, da droga, do Fundo Monetário Internacional, da exclusão e da falta de vergonha na cara foram se alastrando pelo país e formando grandes reservatórios favoráveis à proliferação do sentido de risco.
A epidemia da violência não é uma doença típica do mundo considerado subdesenvolvido. Pelo contrário, ela é conseqüência das forçadas e desordenadas concentrações urbanas, das desmedidas induções de consumo, dos apelos constantes às fragmentações culturais e dos estratégicos investimentos para a manutenção dos surtos de ignorância. Somos hospedeiros de uma espécie de sacanagem transgênica colonial. Estamos com a febre da incerteza e não há outro caminho de alívio para essa patologia que não o da concertação da prudência como maneira de instituir novos parâmetros ao nosso modus vivendi.
A maior dificuldade para isso é que estamos viciados em tentar reagir à epidemia da violência com base em prognósticos de procedimentos taticamente alopáticos. Quando imaginamos o passo seguinte, voltamos sempre aos comportamentos primitivos da assepsia pelo extermínio e pela defesa da disseminação de armas de fogo entre a população civil. A vigilância contumaz estressa, se torna neurodegenerativa, afeta o tecido social e potencializa a síndrome do pânico coletivo. Uma enfermidade que, em nome da proteção, contribui para nos tornar mais ariscos e mais fechados nas cercas eletrônicas da solidão.
Para fugir desse labirinto o jeito é partir para outro tipo de solução enquanto há tempo. Precisamos identificar os professores “Abreu Matos” da segurança e instituir a Farmácia-Viva da confiabilidade. O combate à violência deve ser cultivado no fundo de cada quintal, na sacada de cada apartamento, nos canteiros das vias públicas. A redução da insegurança depende dos chás de consciência que tomamos no dia-a-dia. Temos carência de camomila para o relaxamento nas relações interpessoais e comunitárias; de erva-doce para digerir sem dor de barriga as informações deterioradas do caldeirão midiático; e de boldo para desopilar o fígado na promoção de um mundo humanamente encantador.
A saúde pública precisa de um horto de atitudes político-medicinais. Precisa de vacinas com o princípio ativo da paz e de lambedor de malva para expectorar a secreção do temor que nos incomoda. É uma situação de guerra, o que justifica a interferência dos poderes públicos governamentais e não-governamentais, articulados entre si, numa mobilização para acabar com o porte de arma, com o blefe da proteção privada e com o poder de incitação dos meios de comunicação que não conseguem distinguir o que é jornalismo de execração da dignidade. Permissivos como estamos não temos como fazer parar a transmissão do vírus da violência, nem como estancar a transfusão do medo. Precisamos urgentemente acionar os mecanismos de controle dessa lesão social a fim de deslindar essa trama e não sofrer no futuro uma triste condenação por crime de omissão hedionda.